Pérolas de uma pandemia

Como estudante, historiador, filósofo, professor e, principalmente, como ser humano que sou, desde muito novo nutria fortes desejos de viver um grande acontecimento da História no qual algo de totalmente inusitado e diferente pudesse ocorrer a tal ponto de marcar a realidade mundial de maneira significativa. Nas aulas sobre os períodos Antigo, Medieval, Moderno e Contemporâneo eu ficava imaginando como seria incrível presenciar ou mesmo participar de algum fato hoje narrado nos livros, mas sinceramente eu não esperava que seria do modo como está sendo. É muito triste ver pessoas desfalecendo e me sentir de mãos atadas, com pouco ou nenhum espaço para atuação.

A alguns meses atrás estive pensando que talvez fosse interessante eu ter começado a redigir um diário logo no primeiro dia em a pandemia do Novo Coronavírus afetou diretamente o meu cotidiano – 16 de março, quando as aulas começaram a cessar na educação básica –, provavelmente teria sido um documento bem rico e interessante com registros do desenvolvimento desse problema e alguns de seus efeitos. Pensei até que talvez futuramente poderia ter a possibilidade de publicá-lo, algo semelhante ao ocorrido com o famoso “Diário de Anne Frank” com o diferencial de que eu espero estar vivo após o término disso tudo. Inclusive, o título desse projeto seria o mesmo atribuído a esse texto: “Pérolas de uma pandemia”. Mas, como já estávamos em meados de agosto quando tive essa ideia, apenas pensei mesmo e não fiz nada, quem sabe em outra oportunidade – a qual sinceramente espero não ocorrer – eu poderei levar à cabo este plano. De qualquer modo, para o bem ou para o mal, o tempo está passando, aqui estamos no final de 2020 e, com ou sem diário, eu não posso deixar de tecer algumas considerações sobre as vivências deste ano.

Pensei em diversas maneiras de começar este texto e chego à conclusão de que nenhuma delas conseguiria conter em si a explosão de pensamentos, sentimentos, dúvidas e conflitos interiores e exteriores o quais estão nos envolvendo neste contexto. Opto então por tentar descrever o modo como tenho vivido e digerido toda essa situação, isso sem deixar de destacar logo de início que frente ao desemprego, à violência, à fome, à miséria, à morte, à sobrecarga enfrentada pelos profissionais da saúde e à tantos outros problemas, de fato, sou um privilegiado, ainda que eu não seja alguém com grandes recursos financeiros. Fortemente afetado sim! Mas, não me dou o direito de reclamar da minha situação, eu seria muito egoísta se assim procedesse.

Tenho passado todo esse momento impossibilitado de exercer a função de docente substituto, na rede estadual de ensino, a qual havia executado durante apenas quatro semanas antes das escolas fecharem. Na graduação em Filosofia não tive grandes problemas, pois já era realizada na modalidade EAD, apenas o estágio precisou se adaptar ao modelo remoto, assim com as avaliações semestrais. Por eu residir no sítio com meus pais, continuei trabalhando com a ordenha e estou aproveitando o momento para aprender a cozinhar com a minha mãe e colocar algumas leituras em dia. Além disso, realizei diversos cursos de formação continuada online oferecidos pela Secretária da Educação.

Em relação ao fato de não poder sair de casa com a mesma frequência anterior, sinto como se eu estivesse regressando à minha infância, especialmente aos meus primeiros seis anos de vida. Antes de ingressar na escola saia de casa poucas vezes no mês e não tinha com quem brincar, pois não havia crianças por perto. Ou ainda posso dizer que é como se eu e minha irmã estivéssemos em longas férias escolares. Hoje ao menos possuo a vantagem de ir à igreja semanalmente e em casos pontuais resolver alguma questão na cidade, sempre estando atento às medidas de proteção.

Não estão sendo raras as vezes que a sensação de invalidez e inutilidade me batem à porta: um jovem na transição dos 22 para os 23 anos sem poder trabalhar na profissão que tanto ama, sente-se realmente muito desconfortável. O desejo de independência, de construir um legado, de contribuir para uma melhora na sociedade bate à porta constantemente e, por vezes, nos fazem parecer estagnados frente a todo esse cenário, todavia não há muita alternativa: devemos trabalhar com a situação presente e buscar superá-la do melhor possível.

Sobre minha vida interior, sou obrigado a confessar que ela realmente “virou de ponta cabeça”. Essa pandemia me mostrou que não me conheço tão bem como imaginava. O isolamento social me privou do barulho exterior presente na sala de aula e do convívio social como um todo me colocando frente a frente com o barulho do meu interior. Sim, durante longos anos tentei sufocá-lo, mas agora não teve jeito. Conviver mais intensamente comigo mesmo colocou tudo isso à tona e não dá mais para negar: muita coisa precisa ser vista, revista, melhorada ou mesmo reinventada. Creio que aparentemente não melhorei em muita coisa ainda – é tudo muito recente e rápido, difícil digerir tantas constatações em tão pouco tempo –, mas esse despertar com certeza acarretará bons frutos nos próximos anos. Aliás, mudanças assim são sempre lentas e, por vezes, doloridas, mas necessárias.

Em relação a essa constatação, tive algumas iniciativas importantes as quais prefiro não expor no momento, mas quem observar atentamente meus poemas e prosas desse ano encontrará um teor diferente dos anteriores, não sei se melhor ou pior, porém é inegável que algo novo está se formando. Enfim, chegou o momento de um amadurecimento mais profundo, o resultado não sei ao certo, mas uma certeza carrego: o modo como eu vinha cuidando de mim mesmo precisa mudar, pois isso afeta minhas relações com o mundo.

No decorrer da já referida graduação em Filosofia, tive a oportunidade de me aprofundar um pouco na Fenomenologia Steiniana – corrente filosófica trabalhada por Edith Stein (Santa Teresa Benedita da Cruz). Sendo mulher em um contexto onde a presença feminina era fortemente depreciada nos meios acadêmicos, ela enfrentou de maneira única os problemas de seu tempo – especialmente as duas grandes guerras mundiais – e ainda conseguiu uma manobra admirável: conciliar seus estudos filosóficos iniciais com a escolástica de São Tomás de Aquino, isso devido à conversão ao catolicismo após a leitura de uma autobiografia de Santa Teresa D’Ávila.

Há muito o que dizer sobre Edith Stein, porém ainda a conheço pouco. Pretendo me especializar em seu pensamento, apesar de eu ainda não saber exatamente como o farei. De qualquer maneira, logo de início pude encontrar nela uma verdadeira inspiração para superar os obstáculos deste momento. A vivência prática e eficiente que ela fazia da fenomenologia lhe possibilitava um equilíbrio único e outras características essenciais para uma assimilação e um trabalho interior com a realidade que a rodeava, chegando inclusive ao ápice de ter maturidade para aceitar, sem reclamar, sua trágica morte na câmara de gás do campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau, em 1942. Afinal de contas, ser Estudiosa e Santa não é um trabalho simples não.

Para mim, tem sido uma experiência bem interessante me aprofundar nesses estudos. Essa filósofa teve uma maneira ímpar de relacionar suas pesquisas fenomenológicas e estudos tomistas com sua vivência cotidiana de modo que suas palavras e ações pareciam ser um único elemento, sua coerência era admirável. Observar a vida e obra de Stein me deixa em uma posição bem desconfortável, pois nela encontro exatamente o que falta em mim: afirmo ser cristão/católico, mas meus atos nem sempre confirmam isso. É uma constatação triste, mas necessária!

No campo da convivência familiar, aparentemente, não está havendo grandes mudanças. O fato de morarmos na zona rural e meus pais tirarem o sustento daqui sempre nos manteve bem próximos no dia a dia, de certa maneira isso apenas se aprofundou agora. Logicamente que alguns conflitos acabam aparecendo, entretanto não são nada muito além daquilo que já ocorria anteriormente à pandemia, no máximo se tornaram um pouco mais recorrente apenas.

Algo que muito tem me incomodado é o modo como muitos tem lidado com essa situação: fake news já virou rotina, festas e eventos clandestinos são constantes, viagens sendo realizadas normalmente, bares e lanchonetes lotados, conflitos de caráter político e ideológicos sempre em alta... Um verdadeiro caos! Não acredito que eu tenha a solução para esses problemas, mas percebo que um grande erro, do qual todos somos culpados, está na falta de maturidade para lidar com essa situação.

Não é o momento de contrariar os protocolos de saúde nem de pensar em uma futura – mas, nem tão futura assim – crise financeira para o país, menos ainda perder tempo e vidas com a disseminação de informações falsas. Precisamos entender que não faz diferença no momento encontrar quem foi o culpado pelo início da pandemia e puni-lo – aliás, ao meu ver, em menor ou maior grau, todos carregamos uma parcela de culpa, são muitas questões ambientais, sociais, políticas e econômicas envolvidas –, devemos pautar nossas ações no sentido de preservar o bem mais preciso que a humanidade possui: sua própria existência, em todas as suas dimensões, não apenas física.

Vejo uma dualidade muito desconfortável nesse cenário. Temos diversas iniciativas pautadas na promoção e defesa da vida, as quais são louváveis e essenciais ainda que não sejam o suficiente, porém me parece crescer uma certa naturalização do problema. Na presente data em que redijo esse texto já temos quase 200 mil mortes constatadas no país – aqui desconsideramos o fato de que os dados oficiais possuem autenticidade questionável podendo esconder em si dados bem mais alarmantes – isso para mim é algo chocante, me dói na alma, não se trata apenas de números: eram vidas, pessoas que deixaram famílias, trabalhos, laços humanos, histórias interrompidas, tudo por conta de um vírus que não está sendo tratado como deveria. Creio que essa naturalização seja um dos motivos pelos quais as pessoas não reagem do modo como a situação realmente exige. Não sei bem como explicar, mas tem algo de muito errado nisso tudo!

Outro ponto que precisamos destacar é a acentuação de alguns problemas já existentes no Brasil e no mundo antes da pandemia e alguns outros que surgiram nesse contexto: má distribuição de renda – sendo parcial e temporariamente solucionado pelo auxílio emergencial –, as secas que afetaram muitos locais, o aumento no número de casos de feminicídios e divórcios, as preocupações com a nuvem de gafanhotos, os infindáveis problemas na área da educação e da saúde, poluição e desmatamento desmedidos, corrupção... Enfim, uma preocupação atrás da outra.

De qualquer maneira, temos motivos para comemorar, apesar de confirmada uma mutação genética do Novo Coronavírus no Reino Unido, ao que tudo indica já temos vacinas prontas – as mais rápidas produzidas na História –, além disso, outras mudanças importantes ocorreram no mundo e são louváveis. Mas, disso me surge outra preocupação, muitos falam que não veem a hora de tudo “voltar ao normal” – como se já não estivessem vivendo “normalmente” – mas, sinceramente, penso que essas pessoas deveriam repensar seu conceito de “normal”. Para mim, depois do término dessa pandemia regredir ao mesmo estado de vida que eu possuía antes dela será a verdadeira confirmação de meu fracasso como ser humano. Ao meu entender, não é concebível que depois de tantas graves dificuldades enfrentadas a nível global, cada um se limite à sua vida medíocre anterior, como se nada tivesse acontecido. Isso é realmente ridículo, para não dizer estúpido.

Nosso modo de viver está doentio. A pandemia apenas realçou tantos e tantos problemas os quais já estavam latentes em nosso meio, e inúmeros são os que preferem simplesmente que tudo isso passe para voltarem a viver como antes. Estávamos/estamos em uma sociedade/em um planeta doente e, como dizia o filósofo e educador indiano Jiddu Krishnamurti “Não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade doente”. Acho que nem com Alzheimer - com todo o respeito aos portadores dessa doença – eu conseguirei esquecer essa situação toda e a minha esperança é que com a maioria das pessoas ocorra o mesmo. Cada um de nós necessita tirar um aprendizado – ou muitos – disso tudo e aplicar em sua vida no intuito de levá-lo às próximas gerações.

Por outro lado, não podemos negar que a esmagadora maioria das pessoas não são educadas para possuírem uma “memória histórica” realmente eficiente. Essa pandemia não foi o primeiro e nem será o último problema que afetou/afetará o mundo todo em larga escala. A Gripes Espanhola, tão abordada nos últimos meses, é um exemplo disso: só se passou a falar dela no contexto atual, mas ao que tudo indica ninguém aprendeu muito dela, do contrário teríamos evitado diversos problemas que se repetiram. Em alguns aspectos, parece que a humanidade anda em círculo, por mais que se desenvolva/cresça retorna sempre ao mesmo lugar. Talvez, é só talvez, uma explicação para isso seja essa mania – que eu mesmo possuo muitas vezes – de querer mudar o mundo, mas não ter a coragem de começar por transformar a si mesmo.

De qualquer modo, não nego o que afirmei acima. Não perderei a esperança de dias melhores. Ainda que meio sem saber como agir, uma certeza reafirmo: ficar de braços cruzados esperando a vida passar “como era antes” não é uma opção para mim, mesmo que no final o fracasso impere, até mesmo porque se houve fracasso é sinal da existência de uma tentativa, a qual com certeza ocorrerá de minha parte. Assim, termino essas linhas sem na verdade concluir o que penso e o que fiz, faço e farei sobre tudo isso, porque no final das contas 2020 termina hoje, mas amanhã provavelmente a realidade ainda não será muito diferente do que já está sendo.