Desper

Faz tempo que não sou quem eu sou.

Faz tempo que não sei quem eu sou.

Só percebo que me falto quando

Percebo que não me sinto.

O começo de alguma coisa que eu escrevi com a cabeça suspensa no ar, envolta na fumaça à queima-roupa do incenso cujo cheiro não sinto. Há na minha boca o longínquo ranço do chocolate amargo insosso. Os meus olhos estão um tanto ardidos de tantas luzes. Isso de a cara estar sempre pregada em telas, esperando contato. Essa necessidade de estar conectado a algo alguém é no fundo um medo de ficar só. A solidão é bonita como palavra. Na força que evoca ao solitário ao ser bradada. Eu falo dos meus sentidos. Nas mãos a leveza saltitante dos meus dedos teclando e teclando. Polegar no espaço, indicador na vírgula, dedos escrevendo a palavra dedo. Aos ouvidos a catatonia de uma música repetida, afluente de catarse. Eu disfarço o que acontece comigo, ainda que a sensação seja a de estar atuando o tempo todo, de estar eternamente despersonalizado. Uma onipresente inconsciência que vaga ao meu redor feito névoa em manhãs de outono. Reconheço o bloqueio. Portas parecem se abrir diante dos meus olhos. Fechadas por quem, senão por mim? Pergunta que parece bíblica. Lembro do dia que aceitei e reconheci Jesus no meu coração. Sentado na cama, cabeça voando suspensa no ar igual agora, o rosto quente afogueado pelas lágrimas de riso e pavor diante do óbvio obsceno. Pois sim, há quem tenha colocado um cara legal pregado numa cruz feita de ciprestes. Eu peço desculpas. Essa pode ser uma carta de suicídio. Eu quero me desligar e me desconectar. Recuperar a humanidade em mim. A percepção de que posso agir de maneira que possa magoar e provocar a raiva em quem me ama. Eu falava de solidão. Do quanto ela me afeta. Do quão ela parece mais atrativa quando estou rodeado. Do quão ela se faz opressiva durante aquele segundo que penso no futuro. Eu também falava sobre me ver me vendo me vendo. Vendo-me incompetente e descompromissado, sabendo que é errado estando estagnado a tão apenas olhar. Eu mudei a música, eu posso mudar a música. Vou falar do que sinto falta, imaginando em muitos frames por segundo. O momento que a palma estendida da minha mão pega a luz alaranjada do final de tarde antes de eclipsar seu rosto, os dedos se emaranhando no seu cabelo hidratado, os olhos castanhos calmos crivados nos meus, as pálpebras fechando devagar antes do beijo. Eu falava de dedos e de precisar evitar escrever apenas com os polegares em telas menores do que as mãos. Eu falava da saudade do gosto do seu beijo. Do seu cheiro, dos nossos entrelaçamentos anatômicos. Do seu corpo sobre o meu. Eu falava da solidão de quem erra e teme não ser perdoado.

17/11/2020

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 17/11/2020
Reeditado em 17/11/2020
Código do texto: T7114185
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