Vida intelectual: Desafios

O que você faz para assegurar a sua subsistência também é parte integrante da sua vocação. Eu sempre fui resiliente às distrações do meu entorno; sempre tive grande capacidade de concentração. Passei a pré-adolescência e toda a adolescência e juventude metido nos livros, ocupado ora com devaneios juvenis, ora com questões sérias e profundas. Estudava em casa, no quarto, não por obrigação d'alguma demanda escolar, mas por puro prazer, por um interesse sincero e verdadeiro. No entanto, na medida da passagem do tempo, o "pai da verdade" -- "Veritas filia temporis" --, percebi que aquilo que antes chegava a mim como mero ruído do ambiente, a gritaria dos sobrinhos pequenos, o video game do irmão caçula, a tevê, os passos e movimentos aleatórios dos habitantes da casa ou, a pior parte, o ronco ensurdecedor das motos na rua, agora tomava outra forma. Já não eram mais distrações com as quais eu pudesse lidar.

O que aconteceu? Será que perdi a capacidade de me concentrar? De alguma forma, sim. Mas, graças a Deus, não de todo. Percebi que o problema se resumia da seguinte forma: eu chegara num ponto decisivo na vida, no qual a urgência de uma mudança se fazia sentir com visceral intensidade. Mas, pergunto eu para mim, qual a natureza desta mudança? Com o nascer e o morrer dos anos, vamos percebendo que a natureza do homem é, na verdade, imutável. No fundo, o homem é sempre o mesmo. Descobri que, para tomar novo fôlego na vida de estudos, eu precisava mesmo sair da circunscrição da minha casa, da minha "parentela" e seguir para um lugar onde a Onisciência Divina me guiasse. Por isso sinto como se esses ruídos ordinários do meu cotidiano, esses barulhos que assaltam a minha atenção, tomam nova forma, crescem e me sufocam. São distrações extraordinárias. E com essas eu não posso.

O homem que não consegue lidar com as dificuldades normais do seu cotidiano não pode se arrogar o título natural e respeitável de "Homem". Não. Tampouco o homem que atendeu ao vocativo para a vida intelectual. "Só quem trabalha é que pode estudar, meu filho", disse uma vez um velho filósofo. É verdade. Eu entendo bem, mas às vezes, com o tédio dos dias nos quais, por causa dos ruídos, não consigo mergulhar nos estudos, me aprofundando em alguma leitura ou reflexão, sinto como se esperar fosse a mais difícil de todas as tarefas que Deus ordenou ao homem. Estou trabalhando para a mudança, mas, até que ela efetivamente ocorra, tenho que continuar lutando para me manter íntegro no campo de batalha. Grande ilusão. Quando os vitoriosos voltam para casa, depois de padecerem grandes sofrimentos na guerra, eles chegam aos pedaços, mutilados e com cicatrizes permanentes. É a condição humana.

Vitor Marcolin
Enviado por Vitor Marcolin em 27/10/2020
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