ÉTICA POÉTICO DO INTEMPESTIVO ( UMA ANTI ONTOLOGIA)
O intempestivo não é apenas aquilo que escapa ao contingente e ao cotidiano. É o que transborda, o que personifica a vontade de potência como o inumano da vida que há em nós. É algo que busca existência, que se afirma tornando-se o meio em que existe na medida em que o transforma e converte em plano imanente de maquinações, de sentidos e paradoxos infinitos que produzem a diferença, a aberrancia criativa do caos.
O intempestivo é o lado de fora, um acontecimento, que nos faz resistir ao presente mediante diversas e múltiplas estratégias de delinquência.
Ele é a poesia como ação ética, como afeto e subjetividade criadora de singularidades. Resumidamente , ele é o grande não de um pensamento ainda selvagem, movente e incerto que faz do inventar conceito e palavras aladas um território concreto de experimentação, de intensidades e vizinhanças que nos conduz a vida não orgânica das coisas, transfiguração de uma sensibilidade sem sujeito, como puro acontecimento e ambiência.
Há uma fissura na superfície do real que nos conduz além do exterior( sociedade) e interior ( pensamento diferenciado) no experimentar cotidiano de nós mesmos através de um corpo livre da ilusão de alma e de todo juízo de deus.
Em uma entrevista concedida a Antônio Negri, O devir Revolucionário e as criações políticas ( ou Controle e Devir, in Conversações), Deleuze nos esclarece de forma muito oportuna a relação entre subjetividade, intempestivo e acontecimento, em sua dimensão politica rebelde e concreta:
“Pode-se falar em processos de subjetivação quando se consideram diversas maneiras de por meio das quais os indivíduos ou as coletividades se constituem como sujeitos: tais processos são validos apenas na medida em que, quando ocorrem, escapam tanto aos saberes constituídos quanto aos poderes dominantes- mesmo que , em seguida engendram novos poderes ou tornem a integrar novos saberes. Contudo, no momento em que ocorrem, eles possuem uma expontaneidade rebelde. Não há nenhum retorno ao ‘sujeito’, isto é, a uma instância dada de deveres, de poder e de saber. Em vez de um processo de subjetivação, poder-se-ia falar também em novos tipos de acontecimento: acontecimentos que não se explicam pelos estados de coisas que os suscitam ou para os quais eles retornam. Eles se elevam por um instante, e é esse momento que importa, é essa chance que precisamos capturar. Ou, então, poder-se-ia falar simplesmente em cérebro: o cérebro é exatamente esse limite de um momento contínuo reversível entre um dentro e um fora, essa membrana entre ambos. Novas trilhas cerebrais, novas maneiras de pensar não se explicam pela microcirurgia. Ao contrário, é a ciência que deve se esforçar para descobrir o que pode ter ocorrido no cérebro para que possamos pensar desta ou daquela maneira. Subjetivação, acontecimento ou cérebro parecem-me um pouco a mesma coisa. Crer no mundo é aquilo que mais nos falta; nós perdemos o mundo, fomos despossuidos dele. Crer no mundo é também suscitar acontecimentos, mesmos pequenos, que escapem ao controle, ou fazer nascer novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos.”
in O devir Revolucionário e as Criações Políticas; Antônio Negri. Deleuze e Guattari: Uma Filosofia para o século XXI; organizado por Jefferson Viel. SP: Editora Filosófica Politéia, 2019, p. 125 e 126
Escapar aos saberes tradicionais, a própria ideia de sujeito, por meio do acontecimento, pressupõe, antes de tudo , um reaprendizado do corpo em novos espaço-tempos.