Era feita com muito esmero
Num passado para sempre perdido, as casas, mesmo as das pessoas humildes, eram bonitas, tinham um estilo definido: expressavam harmonia numa formidável síntese entre inteligência e bom gosto. Hoje, porca miséria!, caminhar pelas ruas, seja nos centros históricos ou nos subúrbios das grandes cidades brasileiras é, quase necessariamente, sangrar pelos olhos. Os bárbaros conquistaram nossas moradas, tomando de assalto o símbolo máximo da vida familiar na urbe: nossas casas. Hoje, essas edificações não passam de um amontoado de tijolos numa estrutura disforme. Se antes havia a natural e necessária preocupação com a harmonia das construções, hoje, desgraçadamente, o simples conceito de beleza se perdeu. As pessoas esqueceram o belo, como se nunca o tivessem visto. E, claro, ele, o tinhoso, assume muitas formas e se passa por entendido de muitos temas. Desde os anos de 1960, pelo menos, o Brasil sofre com a intromissão do diabo: ele é arquiteto, alfaiate, gramático, jornalista, professor universitário, funcionário público, animador de tevê e, pasmem, político!
Vivo num município antiquíssimo da região metropolitana da capital paulista, uma cidade que fora fundada pelo próprio São José de Anchieta, na segunda metade do século XVI, durante uma missão catequética. No entanto, mesmo dona de um passado de glória, minha cidade jamais se desenvolveu. O máximo de beleza e harmonia urbana que há aqui são as casinhas dos anos de 1940/1950 construídas no centro e em alguns locais do subúrbio. Outrora, meu bairro fora uma região de fazendas e chácaras, em alguns pontos do quarteirão ainda resistem os antigos casarões. Infelizmente, quase a totalidade das construções antigas está em frangalhos. A beleza é a expressão objetiva de uma verdade elevada, transcendente, misteriosa. Perder esse referencial é perder grande parte do sentido da vida. Sem beleza, não há poesia, não há arte, não há a contemplação dos mistérios do cosmos, da vida e da morte. A estrutura urbana, deve, necessariamente, reproduzir parte dos anseios da alma humana, ora. Afinal, uma cidade é a habitação de seres humanos, criaturas detentoras do aparato cognitivo, não de macacos.
Esse problema é uma jabuticaba. Em outros rincões desse mundão de Adão, as coisas não acontecem assim. Nos Estados Unidos, por exemplo, mesmo nos bairros de subúrbio, nos quarteirões mais afastados dos centros dos condados, as casas e a estrutura geral do bairro não é decadente. Pelo contrário: a manutenção da ordem urbana é lei. Ouvi de um senhor brasileiro, meu professor de Filosofia, que vive no Estado da Virgínia há quase vinte anos: "A única coisa que você consegue fazer depois de descobrir que as casas americanas são exatamente como mostradas nos filmes de Hollywood é sorrir. Aqui, um brasileiro vive com um sorriso permanente no rosto, meu filho".
A perda do referencial da beleza e da harmonia urbana é apenas um dos fatores implicados por um problema maior e mais abrangente: a perda do senso histórico. Atualmente, levadas pelas sanhas ideológicas, as pessoas não têm mais a reverência para com o passado, para com a história da formação da sua própria nação. Arrebatam personagens da história dos seus séculos, das suas épocas, dos seus mundos e, à revelia da mentalidade da época, os trazem a juízo para a atualidade, para o crivo da ignorância e da superficialidade modernas. A burrice é sempre vista de braços entrelaçados com a maldade, a passeio. Quem, portanto, age assim, para além de asseverar a sua mais completa inépcia, avilta o quinto Mandamento, porque rompe com a tradição. Não fora somente o esmero das casas de outrora que se perdeu, o asseio para com a percepção da realidade também se foi. Agora, fechemos as janelas das nossas casas de subúrbio e tentemos dormir, a despeito do ronco estridente dos motores das motos, do falatório dos vizinhos sempre alertas e dos miados das gatas no cio.