CATACRÉTICO
Num mundo todo às avessas
Contemplo o entardecer chegando
Com rabos de galo no céu.
Chego em casa, e espio pelo olho da fechadura
As pernas de uma mesa que se abrem sem pudor.
Os braços da poltrona me recebem abertos,
Quando chego cansado, de mãos abanando.
No bocejo da boca da noite
Pego um livro e viro as orelhas da página,
Para me distrair na leitura.
Sirvo-me um café
Que desce fumegante pelo bico do bule,
E bebo segurando a asa da xicara
Para que não voe sobre mim.
Na geladeira,
Pego algumas cabeças de cebola que não pensam
E pés de alface que não andam,
E que custam os olhos da cara,
Além de um dente de alho não cariado,
Para temperar o jantar,
Porque vou receber um amigo unha de fome
Para um dedo de prosa.
E nesse mundo de pernas pro ar,
Absorvo meu corpo, que não é mais meu,
Distribuído por aí,
Figuradamente, catacrético,
Fazendo parte de minha vida.
Cleusa Piovesan
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