Canibalismo Legitimado
Um pouco de conhecimento não faria mal a ninguém, nem mesmo aos mais afortunados, que nadam em recursos, que usufruem de confortos, que chegam ao ponto de acreditar que não precisam de mais nada. O conhecimento torna-nos conscientes da realidade que nos cerca, desaliena-nos de falácias que mentem sobre nossas origens, que distorcem o verdadeiro significado por trás das nossas conquistas. O conhecimento, utilizado por pessoas de más convicções, pode destruir uma nação, no sentido contrário, quando dominado por pessoas de valente e nobre espírito, ele pode salvar todo um universo.
O conhecimento, o verdadeiro e íntegro conhecimento, faz-nos olhar para as pessoas com um olhar de humanidade, de fraternidade, de solidariedade, não com um olhar mesquinho, egoísta e deficiente que nos leva a condenar as pessoas pela desgraça e miséria que as cercam. O conhecimento honesto nos permite entender que o suposto fracasso dos outros não os tiveram como fator, ao contrário disso, eles puderam ter sido vítimas da própria existência, uma existência que os fadou ao insucesso, um insucesso garantido pelo sistema.
E, então, dotados de um amplo conhecimento, não cometemos a insanidade de acreditar que a crença nos próprios méritos é válida para todas as pessoas, não sucumbimos à repugnância de um pensamento que vomita que moradores de rua estão acomodados na atual situação de suas vidas. Na contramão, entendemos que há uma clara divisão no mundo em que vivemos: de um lado os poderosos, embriagados por seus privilégios, ludibriados com seus status cercados de prestígios, montados na petulância de sua mesquinharia, do outro lado, contudo, vemos injustiçados, pessoas condenadas por sua classe social, desprezadas pela falta de status em seus sobrenomes, esquecidas por suas rasas contas bancárias, marcadas pela cor de suas peles, exploradas por aqueles que são gananciosos ao ponto de matá-las com um sorriso no rosto, uma morte institucionalizada, normalizada, disfarçada de combate ao crime ou, ainda mais cruel, uma morte provocada pela fome.
A falta de um conhecimento humanizado, que nos leve a encarar o outro nos olhos, leva-nos no conforto de nossas camas, tendo ao nosso alcance diferentes fontes de entretenimento que nos apartam de nossos dramas, considerar que as ruas são atrativas e cômodas aos que nelas estão; a falta desse conhecimento fraterno leva-nos no conforto de nossas mesas fartas, na folga de nossas contas recheadas, considerar que aquele que mendiga tem sorte por estar comendo de graça; a falta de um conhecimento piedoso nos torna apáticos ao sofrimento do outro.
A deficiência desse conhecimento, então, leva-nos a entender que as ruas são extraordinariamente belas apesar das violências que incitam contra quem nelas busca refúgio; as ruas são agradavelmente confortáveis àqueles que repousam a cabeça em pedras, que passam dias sem sentir o toque da água em seus corpos maltratados, que de tanto tremerem morrem chorando por um cobertor. Morar na rua é tão maravilhoso que as pessoas escolhem por essa possibilidade, ou seja, elas tinham alternativa e optaram pela mais fácil. Optaram por saírem de suas famílias, optaram por abandonarem os seus sonhos, optaram por passar fome – mas não aquela fome da hora do almoço, uma fome que dura dias e é disfarçada por um copo de água com farinha quando se tem esse copo de água com farinha –, optaram por serem humilhadas, pisadas, por estenderem a mão na ânsia pelo pão e, muitas das vezes, receberem desprezo e condenação, verem as pessoas se afastando como se no simples gesto de pedir por uma migalha pudessem transmitir um vírus fatal. Por que não partimos todos às ruas sendo elas tão atraentes e cômodas?
É muito fácil falar com a barriga cheia, com o guarda-roupa renovado e com os estudos em dia, a falta de conhecimento sobre a realidade de inúmeras pessoas livra-nos da responsabilidade que temos sobre a mudança, sobre a transformação de um cenário tão desumano. Essas pessoas, negligenciadas pelo governo, desvalorizadas por uma gente vazia de alma, querem apenas dignidade, alívio para as suas dores, resolução para os problemas que as levaram para onde estão. Nada acontece por acaso. A miséria não é obra do azar. A pobreza que a tantos corroí até o espírito é o resultado da ganância, da mesquinharia, do individualismo que provocam um canibalismo aceito, aprovado, legitimado, um canibalismo incentivado por um sistema que vê na desgraça o seu pilar de sustentação.
(Texto de @Amilton.Jnior)