diálogo com paisagens - Ato III

a forma de Deus

quando criança

eu imaginava Deus sem pés.

e Deus volitava entre os vilarejos de minha infância.

e toda ocorrência de mães era Deus para mim.

Deus não tinha uma forma ingrata.

ele simplesmente era o negrume pavoroso da noite

despencando do céu.

encharcando o mundo.

era a bunda de vagalumes alfinetando a noite

de um verde luz.

era a sensação das cores

canalizando minha criança

para o brinquedo das coisas.

Deus também não tinha voz própria.

ele sempre foi boca de bicho.

alarido de floresta.

sempre foi ele o canto energizado de cigarras

dilatando propriedade natural da tarde

onde era possível saturar meu perispírito

de uma nudez crepuscular.

sempre fora o barulho das águas na pedra.

o vento assoviando na minha orelha, sempre tinha sido Deus!

Deus também se levanta diferente.

é um levantar de aromas.

petrichor é um despertar de Deus que talvez dormisse.

Deus saía das asas de maria fedida direto para minhas narinas.

o cheiro de tronco verde e folhas secas era o humor de Deus

para as minhas brincadeiras.

sim, eu cheirei Deus toda a minha infância!

talvez a forma de Deus seja a forma em torno da criança.

a criança vê a forma e entende que para tocá-la

precisa amar e sorrir.