Então você é poeta?

“Então você é poeta? ” Fizeram-me esse questionamento, em tom um tanto quanto debochado, e em presença (virtual) de dúzias de pessoas, há algum tempo. Na ocasião nada respondi. A uma porque senti-me ofendido em atestar, sozinho, o que sou e o que não; a duas porque pensei demais e nada concretizei para sintetizar em uma ou duas frases. Perdi o "timming", para usar uma expressão de nosso período pós-contemporâneo (o que seria isso?).

Passado esse tormento, solicitei parecer técnico a mim mesmo, em regime de urgência (numa espécie de Medida Provisória, nos moldes previstos na Carta da República brasileira promulgada na tarde de 5 de outubro de 1988). Na forma e no prazo regulamentar, recebi o dito parecer, o qual reproduzo abaixo na íntegra, a quem interessar possa.

“Ser poeta não é fugir à realidade; ser poeta é ser gente(1). Mas não qualquer coisa como gente escrevendo qualquer coisa como versos, tal qual versado naquele famoso poema de Fernando Pessoa, posto que(2) no heterônimo de Álvaro de Campos(3).

Ser gente, em conceito poético, é buscar diuturnamente conhecimento sobre si mesmo: é morar dentro de si e, por corolário, visitar a toda evidência — e com frequência — os cômodos do ser humano.

Seria de se questionar: mas poeta não analisa a realidade externa, a sociedade, os outros; não flerta com distintos planos e planetas, estrelas e cometas? Sim, mas o faz em prol, prioritariamente, do autoconhecimento. Em rigor, é nessa busca que o poeta acaba por refletir, por meio da escrita (poesia vem do grego poíesis(4), que significa criação), no outro.

Desse modo, subsidiado em diálogo com os insuperáveis poetas Mario Quintana e Fernando Pessoa, entende este departamento que poeta é quem toma para si, se apropria, em caráter irrevogável, do que foi dito a talvez o maior filósofo da história ocidental.

Sócrates, ainda no século V antes de Cristo, ao consultar o oráculo do umbigo do mundo, Delfos, cidade antiga da Grécia, observou a seguinte frase logo na entrada: Conhece-te a ti mesmo.

Conclui-se, portanto, que ser poeta é ser socrático no sentido de que só se sabe que nada sabe (a frase é de Sócrates). Ora, só quem reconhece que nada sabe busca, nos consigo de si mesmo, aprender e apreender algo sobre a vida e o viver. O poeta, de ousado, apreende e vai além porque tem a necessidade de concretizar esses pensamentos em versos.

É o parecer. ”

Diante desse parecer, e após reflexão interna, respondo ao questionamento de maneira objetiva:

Sim. Sou poeta. Sei que nada sei e por isso busco transmitir, por meio de versos, as divagações e conclusões decorrentes do aprofundamento do meu eu.

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1. Nesse sentido: Mario Quintana – Encontro Marcado. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ujJHrfxuwyc>. Acesso: 29 jun. 2020.

2. Posto que equivale a “ainda que”, “embora“: é conjunção concessiva e não causal, como querem tantos — especialmente operadores do direito. Quando Vinícius de Moraes usou “(...) posto que chama” no Soneto de Fidelidade o fez em licença poética, como justificou em jornal tempos depois quando questionado.

3. Assim: PESSOA, Fernando. Tabacaria. Presença: Lisboa. Julho de 1933.

4. ETIM lat. poiesis,is 'id.' < gr. poísis,'criação; obra poética'.

Jonas Sales
Enviado por Jonas Sales em 29/06/2020
Reeditado em 06/07/2020
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