Idiotia estética em três atos

Li cartas que Pessoa trocava com certa Ofélia.

Constatação primeira: aparentemente sou incapaz de me tirar do centro do mundo. Tudo o que leio é lido com pouco, ou quase nenhum, distanciamento. Presto-me a ridícula tarefa de contabilizar minhas correspondências eletrônicas. A quem possa interessar, sofro um déficit da ordem de 6, ou talvez 9, não lembro bem e me recuso a contar novamente quantos e-mails mandei e quantos recebi do sujeito. De toda a forma, bem menos preocupante do que o déficit levado para o túmulo pela pobre Ofélia: o produto da subtração é 200, mais ou menos, também me recuso a conferir. Morreu muito depois dele, se recusando, talvez, a ser outra Ofélia ofendida por um poeta que cismava comunicação com espíritos. Dizem, para amenizar o constrangimento do déficit, que ele telefonava entre um vácuo e outro. Não sei, acho que eram igualmente constrangedores esses telefonemas.

Constatação segunda: Pessoa era cafona. Ou piegas, não consigo decidir o adjetivo mais adequado. Talvez humano, que também é adjetivo. Pois bem, Pessoa era humano (!) e, como todo humano, se apaixonou e se rendeu a idiotia estética – obrigada por mais essa. Imagine só: Pessoa se valia de todo o tipo de diminutivos que se convertiam em aumentativos da cafonice, desculpe-me, humanidade, e levava a comunicação infantilizada às ultimas consequências. “Bébézinho do Nininho-ninho Oh! Venho só quevê pâ dizê ó Bébézinho que gostei muito da catinha d’ella. Oh! E também tive munta pena de não tá ó pé do Bébé pâ le dá jinhos. Oh! O Nininho é pequinininho!”. Juro que me horrorizei. Mas não tive o descaramento de não admitir, a mim e a vocês, que talvez eu incorresse nessa cafonice, perdão, humanidade, se tivesse trocado cartas com Pessoa nos anos 20 do século passado. Neste século e nessa década, garanto que não. Minhas idiotias até aqui foram, digamos, mais adultas. Horrorizariam minha família e pessoas castas; excitariam todo o resto.

Constatação terceira: Desdobramento da primeira, constatei que eu bem poderia ser Ofélia e ele Pessoa. É evidente que minhas disposições amorosas são muito maiores do que as dele e que ele escreve infinitamente melhor do que eu. Imagino se Pessoa não se frustrava ao ler aquelas linhas corretas, mas medíocres. Se Ofélia fosse também poeta, teria conseguido diminuir o déficit nas correspondências? Suspeito que sim. Li que poetas são um tipo hermafrodita de gente. Encerram-se em si, ou só se relacionam entre eles. E como meu critério para acreditar no que leio é se o que leio é bonito, acabei acreditando nisso. Não é lindo pensar numa classe de gente que se reconhece não ao constatar no outro a existência de pernas, polegar opositor, dois olhos, uma boca e outras mesmices, mas sim por perceber, ao fim e ao cabo de umas palavras escritas, que ambos carregam por aí, na naturalidade que se carregam cotovelos ou testa, olhos que fazem mais do que ver e que às vezes nem se prestam mais a isso? Há poetas, como Borges – que li, mas não entendi – que até desistiram dessa vulgar utilidade. Eu acho lindo. Os imagino topando com os signos da língua materna compartilhada, que nada tem a ver com idiomas e, imediatamente, concedem “esse ser é dos meus, posso amá-lo de verdade”. Acho que dizem para si outras coisas, mais bonitas certamente, mas é algo nesse sentido. Se eu fosse um desses seres saberia contar para vocês. O problema é que não sou, mas tento agora estupidamente tornar-me. E, estupidamente, suspeito que seja só para que ele me ame de verdade.

Idiotia estética em três atos.

Diana Diniz
Enviado por Diana Diniz em 28/05/2020
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