O desespero da fome não tem limite

Nas estradas que percorri ouvi muitos relatos de fatos ocorridos na vida das pessoas, dentre os quais alguns me comoveram, como o que vou contar aqui.

No sertão do Piauí uma família composta pelo casal e mais seis filhos pequenos, onde o último aproximava-se aos 2 anos e o primeiro não havia chegado aos 12 anos, com idades seqüenciais com intervalos de 1 a 2 anos, tipo “escadinha”, como se diz no nordeste.

Casal humilde que dependia unicamente do trabalho “braçal” do pai, pois a genitora tinha como atividade única, que por sinal, muito laboriosa, cuidar dos serviços de casa que ia desde pegar a lenha no roçado, para colocar na trempe para cozinhar os alimentos; ao cuidado da higiene de todos os pequenos, dos quais, dois meninos e quatro meninas.

O senhor Pedro muito trabalhador, homem disposto e prendado nas atividades rurais, se desdobrava para dá conta do sustento da casa. Plantava de tudo no seu roçado: mandioca, milho, arroz, feijão, quando chovia bem, tinha muita fartura, mas nem todos os anos o “inverno” era bom o suficiente para ter uma boa colheita para atender a demanda do suprimento para o ano inteiro até chegar à nova safra.

A dona Virtu, como se chamava a mãe da criançada, pois seu nome mesmo era Maria Virtuosa. Para dá conta da casa, acordava às cinco da manhã e só ia dormir quando o último já estava acomodado em sua rede, já bem tarde da noite.

Devido às dificuldades, muitas vezes impostas pela própria natureza, região do semiárido, com a escassez de chuvas a alimentação, invariavelmente, ficava comprometida e o Sr. Pedoca tinha que se virar para não deixar faltar o básico, tamanha era sua responsabilidade. Habitualmente pegava a rede de pesca, a tarrafa e ia aventurar algum peixe para amenizar a fome que sempre ameaçava atormentar.

Um dia ao chegar a sua casa estava uma tristeza só, pois não havia nada em casa para comerem, ele então foi ao quarto onde guardava todos os seus apetrechos de trabalho, já era mais de 20h, embora noite sem luar, se mandou para a lagoa com uma rede de pesca já bastante puída devido ao tempo de uso. Ao chegar ao local, pegou o coxo e atravessou para o outro lado, pois lá era comum encontrar algo com mais facilidade. Armou-a e voltou para esperar enche-la de peixes. Deu um tempo e ouviu uma grande movimentação no local onde havia estendido a armadilha, vez que a escuridão não o deixava ver nada. Percebendo o burburinho na água, partiu pra lá, pra ver o que estava acontecendo, quando de repente, deparou-se com uma grande sucuri que havia invadido a rede para comer todos os bichos que estavam presos. A sucuriju ao sentir a presença do pescador, cuidou-se em desvencilhar-seda mesma, a qual ficara em situação deplorável e sem nada no seu interior. De imediato ele cuidou em recolher o que havia sobrado e voltou para sua residência, para à luz de lamparina (vela), tentar remendá-la.

Quando chegou a casa, estavam todos acordados à espera de uma boa surpresa, o ambiente de expectativa transformou-se numa desilusão profunda ao ouvir a notícia da fracassada pescaria.

Apesar de tudo, não perdera as esperança, cuidou em pegar os materiais, como linha, agulha, sovela, faca, para remendar a rede que a intrusa havia rasgado. Puxou uma cadeira sentou-se e pôs a remendar os buracos. Na sala apenas o Matheus, o penúltimo dos filhos que contara apenas 4 anos, sentado do outro lado da sala, encostado na parede, quase de cócoras, com as mãos segurando as pernas, a observar o trabalho do seu ídolo. Enquanto que os demais irmãos haviam se acomodados em seus respectivos lugares habituais de dormirem todas as noites. De repente aparece sua mulher, que por conta do desespero de ver seus filhos se lamentar pela inexistência do que comer, pois sempre é a mãe a mais cobrada, por ser ela a que fica mais em casa e que no entendimento das crianças é ela a responsável pela comida pronta. Então passou a transferir com palavras essa “culpa” ao seu marido. E ele caladinho a fazer o seu serviço para ao concluí-lo retornar à lagoa e tentar novamente conseguir o tão almejado jantar. E sua companheira continuou a falar, coagindo-o incessantemente, numa pressão sem fim. Quando de impulso ele se levantou com a faquinha afiada na mão, que a utilizava para cortar as pontas de linha de nylon e perguntou acintosamente: - Virtu, carne serve? – Passou a faca na sua própria coxa que o sangue espirrou!

-A criança que observava o trabalho do seu pai ao ver o fato, correu para cima dele chorando em estado de desespero. Os outros se assustaram com o alvoroço, levantaram todos, e foram ver o que havia acontecido. A senhora em estado de choque, sem saber o que fazer começou a chorar e pedir desculpas!

O menino do canto da sala que observava e viu tudo, era um dos personagens desta história, que ao lembrar começou a lacrimejar os olhos, então o pedi para não continuar o relato, pois não vale à pena sofrer por um passado triste. Suas últimas palavras sobre o assunto foram às seguintes: “(...) desde esse trágico episódio, nunca mais deixei de trabalhar um dia sequer, e sempre me dediquei a ajudar meus pais, para que cena desse tipo jamais viesse repetir-se diante de mim!”.

Gilberto Moura

Gilberto Moura
Enviado por Gilberto Moura em 15/05/2020
Reeditado em 13/07/2020
Código do texto: T6948388
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