A MAGIA DO EXÍLIO

Em meio a tantas opções de leituras, procurava algo novo. E eis que me deparo com um exemplar de “A morte de Virgílio”, de Hermann Broch. Fora considerado por George Steiner, tão grandiosa como Ulysses, de Joyce. Ao término dessa delirante e extasiante leitura, vi-me embaraçado em tecer um comentário sobre a obra, ainda que superficialmente. Devido sua grandeza e não muitas das vezes complexidade, “A morte de Virgílio” soa como uma voz estrondosa, abalando – sistematicamente – as verdades dos deuses e dos homens. Oriunda das profundezas da agonia do exílio e da solidão do cárcere, Virgílio encarnou uma amálgama de reflexões, vislumbros e desilusões que Broch experenciara em sua fragmentada existência. Exilado da sua pátria e da sua própria identidade, restara-lhe apenas o movimento do retorno a si mesmo. Esvaziar-se para refletir a mais penosa das reflexões: a morte. O poeta latino, Virgílio, vivera nos dias de Octaviano Augusto, o poderoso César. Contudo, contrito e miseravelmente enfermo, vê-se diante da iminente morte, depois de dedicar sua vida a poesia; dando vida (incompleta) a Eneida, a obra máxima de Virgílio. Sua chegada a Brundísio, não fora como talvez esperava; triunfante e cheio de orgulho. Não houvera êxtase ou sonoras vozes entoando versos da Eneida. Os romanos estavam ébrios de carnalidade e entregues a zombaria. Virgílio em meio ao próprio padecer, fora escarnecido; o que muito lhe abatera. O poeta carregava em sua amargurada alma os sentimentos mais abjetos por sua obra, voltando-se a reflexões profundas a respeito da importância da sua construção. Eis que se inicia os conflitos assombrosos na narrativa de Broch. O autor dera voz ao protagonista Virgílio, naquela que seria suas últimas 18 horas de vida; como também, a voz do próprio autor que confundia-se às reflexões do poeta, construindo uma narrativa contínua, com raras pausas. Chamam de fluxo de consciência essa rede narrativa. A narração se mescla a fala do artista e do protagonista, exigindo perspicácia interpretativa e atenta leitura. Além dessa particularidade narrativa de Broch, o que já tornaria a obra magnifica, ele ainda não economizara no acabamento estético da sua obra. A beleza que dera a prosa na forma poética, remete a próprio linguagem da época, conservando as tradições e os costumes da gloriosa Roma, que respirava as grandes construções artísticas. No leito de morte, o poeta sente-se desprezado pelo povo (não que almejava glória) mas que sua obra não atingira o fim que pretendia. Para Virgílio, sua obra não passara de um arranjo estético, infrutífera porque não transcendera às dimensões dos mistérios da morte. O poeta queria que sua obra trouxesse além de beleza a grandiosa Roma, conhecimento. Saber que fosse capaz de refletir sobre a existência a partir da nossa finitude. O fim nosso de cada dia. Ameaçado pela Gestapo, Broch foi jogado ao cárcere em 1938, por ser considerado comunista. Na absorta solidão, Broch iniciara uma profunda meditação sobre a natureza da arte e do artista. Aos montes de fogueira de livros e caça aos artistas, o autor se vira ameaçado pelo temor da morte. A magia e os mistérios revelados na obra, é fruto da dor do exílio. Longe de suas origens, só restara o poder da criação e o vazio espiritual. Enquanto a figura de César recebera os louros da inflamada massa, o artista enfermo já não rendia encanto. Talvez o papel do artista não é de promover o encanto e beleza. Numa dimensão metafísica do homem, o conhecimento longe da reflexão da morte, seria um Eu desagregado e fadado ao individualismo. Determinado a destruir a Eneida por causa dos excessos de caprichos, ele recebe a visita conturbada de Augusto. Antes desse encontro épico, que rendera calorosa discussão, Virgílio sofre uma noite tenebrosa, em meio a febricitantes delírios e múltiplas visões, o mergulho ao infinito é inevitável. Seu estado agônico levara as mais difíceis verdades sobre a constituição humana e os fenômenos cósmicos. Meditações que remetera a realidade efêmera e dualista. Virgílio se rendera a implacável realidade sustentada por forças antagônicas. O bem e o mal; a força do gênio da criação e do maligno; do sol e da treva; da vida e da morte eram símbolos que saturava o mundo dos vivos. Diante da morte, o que restariam dessas profundas revelações do espírito? A agitada noite, cercada de figuras pavorosas, o sol nascia de forma tímida, e a consciência frágil do poeta se recobrava. Cercado de escravos, amos, médico e do fantasma de um garoto que ora emudecia e ora citava ditos profundos, não se sabe ao certo sua real participação na obra. Em seguida, Augusto resolve visitar o enfermo Virgílio, e sabendo do plano pérfido de destruir a Eneida, inicia-se um longo debate sobre a fidelidade do artista ao seu povo e a quem de fato pertence a obra do gênio. Irredutível, o poeta rejeita a glória de poeta e da magnificência que lhes rendera a Eneida. Enquanto Augusto estava preocupado com a fama terrena, Virgílio estava fiel as questões essencialmente transcendentais. Só o conhecimento liberta. A arte destituída de profícua reflexão da morte e da natureza não mereceria perpetuar-se. Inconformado pela decisão de Virgílio, Augusto revela que a obra não pertencia-lhe mais, e sim, ao povo. Eneida agora é patrimônio do povo de Roma. As arguições de ambos os lados seguiram até à exaustão intelectual e espiritual. Já nos últimos suspiros e lástimas, Virgílio resolve abdicar da sua obra entregando o manuscrito ao obcecado Augusto. Desde que Augusto conceda a liberdade aos escravos do poeta, assim que partisse. A morte de Virgílio é um marco da literatura do século XX. Broch conseguira reunir numa única obra a mística da arte imbricada ao fel da morte. Junto a conceitos do neoplatonismo e de alquimia, a narrativa do romance ganha fases de queda e ascensão, assim como a trajetória do poeta. Declínio da doença e liberdade na morte. Broch não terminara a vida no cárcere. Nem sua obra fora acabada lá... Mas o exílio lhe acompanhara até o fim. E esse expatriado ganhara fome da magia. Pois só ela foi capaz de exprimir o inexprimível.

Juliano Siqueira
Enviado por Juliano Siqueira em 29/02/2020
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