Afloramento
Saí do cinema.
Só consegui enxergar a escuridão nas ruas.
Senti como se o mundo inteiro tivesse perdido a voz e eu estava, ali, diante de todo aquele silêncio.
Uma paz nunca antes habitada.
Continuei caminhando ao léu, pensando nas tantas possibilidades da vida e na coragem diária de ressignificar o próprio ser.
Fui tomada por uma surdez de dimensão irreal.
O único barulho capaz de ser ouvido foi o dos meus pensamentos em êxtase.
Nem os meus passos, no puro contato com o asfalto, fizeram surgir algum som.
Perda do tato, olfato, paladar.
Sensação de estar levitando.
Totalmente nua.
Desataviada de anseios incabíveis, ao estabelecer uma ponte de diálogo com o meu estado mais profundo.
Eu estava comigo mesma apenas.
Ou fora de mim, traçando um grau de tamanha subjetividade, já que é impossível apartar-se da existência.
Cogitando a grandiosidade da solitude, sem o menor ruído naquela ocupação de diferentes espaço-estágios.
Ao atravessar pessoas, vi a transparência de um cotidiano árduo e, muitas vezes, um tanto infeliz.
Notei, então, a fraqueza comum que sucumbe às aparentes ameaças dos nossos obstáculos, além dos que são colocados por outros.
Observei o vazio das materialidades, dos muros, das desatenções humanas.
A cruel desatenção!
Em seguida, escutei as folhas caírem da árvore, postas a dançar na calçada.
Experienciei o vento tocar, delicadamente, o meu rosto.
Nesse instante, recuperei meus sentidos de modo brutal.
Percebi que estava praticando o autocuidado.
O aperceber-se é cuidar de si, assim como a sensibilidade de buscar enxergar o adverso.
A perspicácia de alcançar os detalhes mínimos, ainda que seja pouco a pouco.
Sorri feliz e respirei aliviada!
Que noite!
Por mais afloramentos como esse!