Dores de parto de um despertar espiritual

Como bolhas de ar que sobem à superfície do mar escuto vozes que invadem o silêncio de minha montanha. São vozes tristes, não porque soam tristes, mas porque sofrem. Sinto o sofrimento despertando, sutilmente abrindo os olhos do seu irmão desprezo, que comigo tem subido a montanha. De um lado, alguém está responsabilizando outra pessoa por alguma coisa que não gostou, ou melhor, culpando; de outro, um casal discute quem tem mais culpa pelo relacionamento estar desabando; e de outro, alguém solitário, por conseguinte está pensando estas palavras. A voz da esquerda, pelo tom, não tem noção de que está sofrendo, está mais branda, apenas apontando o dedo; a voz da direita, mais acentuada, desprende uma vibração emocional mais intensa, beirando a raiva, mas contendo-se; e a voz do centro, esta voz, entediada, sufoca no desprezo das duas vozes - ou de si mesma? Provavelmente as duas coisas...

    É foda, mas meu faro para o sofrimento, o menor possível, se apurou a tal ponto que, onde tiver pessoas, eu o sinto na minha teia de aranha. Sinto-o porque no instante em que noto sua presença surge-me uma reprovação que vibra a teia inteira. Queria não perceber mais nada, ser como um animal...

      Nos dois primeiros caso pensa-se ser natural agir assim, pois só consideramos sofrimento uma dor física, a morte de um ente querido, a perca de alguma coisa, uma enfermidade, enfim, tudo que "temos" e somos obrigados a desapegar por consequência de um fim. E o terceiro caso? Escrevo porque sofro, porque ao ouvir estas vozes confusas na noite dos sonhos o sofrimento abriu os olhos e despertou em mim. Este texto é uma fuga do mais-do-mesmo de cada dia, uma fuga do desprezo de si mesmo.

    A única coisa que me difere deles é o nivel de intelecto; quem mais intelecto tiver, por conclusão lógica, irá buscar o isolamento, um refúgio no niilismo - para não dizer castração - pois já percebeu que há uma irracionalidade em nossos relacionamentos. Vide nossos grandes filósofos. Raciocina-se assim - "a busca por ideais só leva a frustração, logo"...

     Esse é o meu caso: por comparação ao que estou escutando, prefiro meu isolamento. É mais fácil lidar com os próprios demônios do que com o de outras pessoas. Se elas me atacam, eu primeiro observo minha reação, tento medir minhas palavras, mas chega um ponto que se torna difícil de suportar, então torno-me ácido, corrosivo, surge-me uma máscara terrível e sem compaixão nenhuma. Mas depois sofro por ter ferido alguém, e sofro duplamente porque odeio me arrepender, fazer coisas por impulso e depois sentir remorso, então sufoco essa voz compassiva num ato de supressão, dizendo - "se assim eu fiz, assim eu quis". Só assim restabeleço o equilíbrio. Parece-me quase impossível agir imparcialmente, quero dizer, agir de forma branda, sem inflamar ainda mais o ego do outro quando você está sentindo o fogo te queimar por dentro. Eu até tento, mas acabo me sufocando no silêncio...

       Às vezes tive a oportunidade de encontrar uma ou duas pessoas que também tentavam conter as emoções em chamas, e assim podíamos usar livremente as palavras sabendo, parcialmente, que não éramos nós, mas nossas sombras que se manifestavam. Bom, pelo menos tentávamos.

      Mas se a pessoa não colaborar comigo, se ela for agressiva demais, insistente, eu chego num ponto que me incinero no fogo da raiva. Então, resolvi me isolar e só descer da montanha quando tivesse me tornado o que sou. Mas ainda não acostumei com o frio, com a solidão do sul da alma, nem sei se irei acostumar-me. Porra... o homem não foi feito para viver (estar) sozinho, e sim para ser sozinho.

    Sim, eu estou sofrendo. Gostaria de dizer que "só há sofrimento" como o budista. Mas... Estou apontando sim o dedo para as pessoas, como as vozes do casal que agora mesmo escuto culpando um ao outro - que, pelo que noto, estão chegando ao ápice. Não sei por qual motivo isso me faz querer desaparecer deste mundo. Como eles poderiam se entender? Como eu poderia me entender? Ler, praticar observação? Não suporto mais nenhum livro sobre espiritualidade; praticar meditação só me leva ao marasmo. Cansei dessa maresia; desse estado insosso, onde não se vive nem se morre; não se aborrece, mas também não se alegra. Meu sofrimento é o tédio e o desprezo, é sentir que nada vale a pena fazer.

     Sei lá, parece que castrei minha vida. Isso cansa. Sério.

    Porém, eu não quero mais me envolver numa autosuficiente e inquebrável carapaça. Como não tornar-se corrosivo quando alguém é insistentemente corrosivo com você? É extremamente difícil não tornar o sofrimento pessoal, ser um corpo sem órgãos; será que temos de sofrer profundamente para perceber a insanidade em que vivemos? É o que está me parecendo. Se for, ai de nós! - "peguem seus galões de gasolina e vamos pôr fogo neste mundo que chamamos de ser humano; a moral é negativa, a ética é uma farsa, fora com tudo isso! Olho por olho, dente por dente; dificultemos as coisas para todos; plantemos a discórdia; matem-se quem quiser; empunhemos as armas e incineremos este mundo que chamamos de humanismo".

      Sei lá, minha cabeça anda fervilhando de loucuras. Só sei que não adianta abrandar os corações, praticar a observação, sempre iremos reagir inclinados a querer algo; ou você compreende essa parada aqui e agora, ou vai morrer tentando; o que é uma merda, não?!? ter jogado a vida fora por uma busca infrutífera - a não ser que creia em reencarnação ou sei lá o que mais, caso contrário, feliz daquele que subiu no palco, como o Príncipe de Maquiavel e fez a obra antes dela o fazer. Meu deus, o tempo está passando! Eu vou morrer sem viver! Na boa, melhor seria nem saber nada desse tal despertar, ou esquecer de tudo que se sabe sobre ele e viver a vida de qualquer jeito. Mas como? Depois que essa coisa te pega, não tem mais jeito de sair. É horrível.

      Na há fórmula de sair disso, argumento nenhum ou técnica ajudará, já tentei de tudo. "A questão não é sair, é entrar - o desejo de se libertar ainda é um apego" - pouts, como isso me deixa doido! Pro diabo com esse ensinamento, seus olhos puxados! Ah, como eu vos invejo! Melhor seria se o tal Brahma não tivesse "aparecido" para Buda e coagido ele a ensinar; ele tinha optado por não ensinar, ele sabia das dificuldades, mas deu voz à sua moralidade; aposto que humanidade ou já teria tornado o que é ou teria perecido. Deixasse-nos com nossas ilusões, pois falar só complicou tudo - "Você já tem o que nós temos; você é o que nós somos" -aaaaah, calem-se! Essa voz... quem sou eu?

    Não sei...

Desculpem a histeria. Como não tenho ninguém para despejar meu sofrimento, sofro comigo mesmo, sozinho como um autista em seu próprio mundo. Já não me resta outro caminho senão continuar subindo minha montanha, e quando estiver chegado ao topo, mais sozinho que as estrelas, inflado a tal ponto que nada mais me restará senão eu mesmo alfinetar o balão, depois pularei lá de cima para morrer na planície. Talvez enlouqueça; talvez eu pereça; quem sabe eu compreenda tudo?

      Não sei... não sei... não sei...

Fiódor
Enviado por Fiódor em 04/12/2019
Reeditado em 12/11/2022
Código do texto: T6810540
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