Em matéria de esforço (pessoal): ou o melhor ou o pior de uma vez

A frase que inspira este ensaio é trecho de letra musical: o rapper brasileiro Mano Brown — do grupo de rap Racionais MC’s —, na música “A vida é desafio”, após dizer que o negro (melhor seria: pobre) está, logo de partida, pelo menos cem vezes atrasado, pontua que não há meio termo para ter sucesso: “ou o melhor ou o pior de uma vez”.

Ocorre que ao adotar essa ideia como norte de vida e refutar, por conseguinte, que virtus in medium est, como queria Aristóteles no século IV a.C., não raras vezes o sujeito competitivo tem de escutar calado pareceres do tipo: “o problema é que você exagera na dose...” ou ainda “é que você só vive no limite. ”[1]

Mas será que é isso mesmo...? Assumir o meio termo, a priori, não significaria um convite à mediocridade? Uma licença para não ser melhor a cada dia? Avisa-se, de antemão, que não se está aqui a debater sobre ser melhor que o mundo ou algo que o valha, mas mais aprimorado do que a sua versão anterior a cada dia. Passa-se, pois, a pequena incursão de textos que, felizmente, abordaram a questão do esforço, do limite, da entrega, em detrimento da cultura do possível, do mediano acomodado (feliz?).

Do esporte, talvez o nosso maior esportista[2], Ayrton Senna da Silva — ou do Brasil, por apropriação —, três vezes campeão mundial de fórmula 1, tem frase que veda qualquer interpretação que não a do all or nothing: “no que diz respeito ao empenho, ao compromisso, ao esforço, à dedicação, não existe meio termo. Ou você faz uma coisa bem-feita ou não faz”[3].

O livro “A Marca da Vitória” registra que certa vez o fundador da Nike, Phill Knight, quando ainda jovem, durante uma corrida matinal no parque próximo à sua casa, teve uma crazy idea que mudaria sua vida dali em diante, isto é: cogitou comprar tênis no Japão para vendê-los para seus conterrâneos americanos (década de 1950 no Estados Unidos), o que passou a fazer no porta-malas do carro e com total desaprovação do pai, que acreditava que a vontade de potência[4] do garoto seria pelo rumo da academia — Phill era então mestrando em Educação Física. Para o que aqui importa, Phil Knight afirma nessa obra que a vida não tem beleza quando você perde[5] — não naquele momento da derrota.

Poder-se-ia, também por amostragem, falar de Abílio Diniz, o self-made man brasileiro por excelência, que em sua trajetória passou de garoto pobre gordinho que apanhava na escola à maratonista, lutador, dono de uma das maiores redes de varejo do mundo[6].

Esses são apenas alguns exemplos de pessoas que parecem ter encontrado no esforço sua principal força motora. Para esses e tantos outros vencedores no anonimato espalhados pelo mundo afora e ao longo da história da humanidade parece haver, ao fim e ao cabo, e ainda que indiretamente, o pensamento de outro vencedor pelo esforço: Geraldo Rufino. O paulista catador de lixo que hoje fatura cerca de 50 milhões por ano em empresa de reciclagem (crazy idea também, não?). Ele diz em obra igualmente autobiográfica: “se por acaso tiver uma pedra no caminho ela vai servir de degrau, porque eu vou crescer de novo fazendo uma outra coisa[7]”.

Pois bem. E a filosofia com isso? E as Sagradas Escrituras?

O filósofo paranaense Mario Sergio Cortella, no livro “Qual é a tua obra? ”, afirma existir um problema gigante nos brasileiros chamado síndrome do possível. É que aqui se escuta com enorme frequência um advogado, por exemplo, dizer que vai fazer o possível para ganhar uma causa, ou que o médico que vai tentar o possível para melhorar a situação do paciente. Nos Estados Unidos, ao revés (e sem querer importar atitudes de americanos como se fossem sempre superiores — a isso Nelson Rodrigues[8], o maior dramaturgo brasileiro, já cunhou se tratar do complexo de vira-lata), os americanos não raras vezes tomam a iniciativa nas tarefas e soltam um I will do my best, isto é, eu vou fazer o meu melhor! Sim, invariavelmente está-se aqui a falar em pensamento positivo. À reflexão: quem fala I will do my best tem direito a fazer menos do que o máximo do seu esforço — até mesmo por coerência?

Da Bíblia Sagrada, de outro lado, se poderia aqui tecer inúmeras reflexões de diversos livros nela insculpidos que bem demonstram a importância tanto do esforço quanto do trabalho de si para si mesmo. Saca-se uma: a lembrança que Salomão faz de que a formiga “(...) não tendo superior, nem oficial, nem dominador, prepara no Verão o seu pão. ”[9]

Ainda sobre as formigas e o incansável poder de organização, esforço extremado e desconhecimento de limite no trabalho, é assinalado também em Provérbios:

Vai ter com a formiga, ó preguiçoso, considera os seus caminhos e sê sábio. Não tendo ela chefe, nem oficial, nem comandante, no estio, prepara o seu pão, na sega, ajunta o seu mantimento. Ó preguiçoso, até quando ficarás deitado? Quando te levantarás do teu sono? Um pouco para dormir, um pouco para tosquenejar, um pouco para encruzar os braços em repouso, assim sobrevirá a tua pobreza como um ladrão, e a tua necessidade, como um homem armado”.[10]

Portanto, parece ser preferível seguir, no que tange ao desempenho, ao esforço, ao modo de pensar os estudos, o trabalho, o esporte, o que for, com o raciocínio de que vale a pena se dar todo em tudo (porque a vida só se dá para quem se deu[11]), desde que obviamente respeitada a máxima romana de que seu direito termina quando se inicia o do outro.

Numa palavra emprestada e poética?

“Para ser grande, sê inteiro: nada

Teu exagera ou exclui.

Sê todo em cada coisa. Põe quanto és

No mínimo que fazes.

Assim em cada lago a lua toda

Brilha, porque alta vive”[12]

Notas de rodapé

[1] Aqui cabe um registro: não se está a referir sobre dietas ou modo saudável de vida. Refiro-me pura e simplesmente ao esforço — em tudo.

[2] Particular e respeitosamente continua-se a achar o maior esportista brasileiro o atleta que tem mais de mil gols, que foi considerado o melhor de todos os esportes no século XX (pela FIFA) e que deu ao Brasil, além da notoriedade e do apelido de país do futebol, nada menos do que três Copas do Mundo. Ah: chama-se Edson Arantes do Nascimento.

[3] Ayrton Senna da Silva. In: <https://www.youtube.com/watch?v=SPox2F0OEPQ>. Acesso em 16 de outubro de 2019.

[4] NIETZSCHE, F. A Vontade de Poder. Trad. Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Francisco José Dias de Moraes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.

[5] Knight, Phil. A Marca da Vitória: A Autobiografia do Criador da Nike. Editora Sextante: São Paulo, 2016, p. 66.

[6] CORREA, Cristiane. Abilio: determinado, ambicioso, polêmico. Rio de Janeiro: Primeira Pessoa: 2015. É certo que, por dever de honestidade, no livro Novos caminhos, novas escolhas: gestão, liderança, motivação, equilíbrio, longevidade e fé (DINIZ, Abilio. Editora Objetiva: 2016) o autor, já com 79 anos, deu a entender que tem prezado mais pelo equilíbrio, o que se afigura normal pelo ciclo mortal da vida.

[7] RUFINO, Geraldo. O catador de sonhos. Editora Gente: São Paulo, 2015.

[8] RODRIGUES, Nelson. À sombra das chuteiras imortais. São Paulo: Cia. das Letras, 1993. p.51- 52: Complexo de vira-latas.

[9] Provérbios 6:7.

[10] Provérbios 6:6-11.

[11] Como dizia o poeta. Toquinho e Vinicius de Moraes. In: <https://www.youtube.com/watch?v=oIelCdlc0hA>. Acesso em 17 de outubro de 2019.

[12] Para ser grande sê inteiro. Fernando Pessoa. Ricardo Reis.

Jonas Sales
Enviado por Jonas Sales em 24/11/2019
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