A jangada e o sonho
"Eu é que não me sento no trono de um apartamento, com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar."
Graças à deus que rompi as amarras de uma corrente pesada, sufocante, que me tirava do meu próprio centro de equilíbrio.
Num esforço tremendo para me adaptar a um padrão socialmente aceitável, pelo qual eu poderia ser respeitado e admirado por ter conquistado mais uma vitória na vida.
E nessa padronização de mim mesmo não havia quietude, não havia um repousar tranquilo, pois o dia de amanhã viria inexoravelmente atormentar meu sono e me perpetauar na escravidão social que eu próprio me colocara.
Sem qualquer garantia real de que a realização pessoal viria acontecer, o sonho mais profundo vivia adormecido, ou melhor, amordaçado sob a promessa de que amanhã ele seria liberto e teria sua vez.
Meras afirmações sem lastro algum de credibilidade. Na ilusória roda gigante, movida à combustível de status social, sutilezas de todo tipo tentavam incessantemente persuadir-me de que eu já era um grande homem, vencedor das batalhas da vida e merecedor de regalias reservadas apenas à quem chegou aonde
eu havia chegado.
Porém, bastava que eu me convencesse minimamente de que aquela voz estava certa, baixando a guarda da humildade, para que viesse uma avalanche de verbos imperativos determinando "faça", "entregue", "protocole", "redija", "revise", "arquive", "confira"; verbos que impretervelmente me levariam a pensar, auto-impositivamente: "fique até mais tarde", "não vá correr hoje, você precisa trabalhar", e "deixe isso (seu sonho) para depois". Ó senhor!
É quando se chega ao ponto de anular-se a sí próprio, a não mais existir na própria existência. Vive-se em função de cumprir as tarefas do dia, que, incessantemente, se multiplicariam em dezenas de novas tarefas, tal qual o monstro de sete cabeças. Assim, a agenda de "checks" nunca estaria totalmente zerada, ou seja, independente de quantas cabeças eu cortasse, o monstro sempre as multiplicaria perpetuamente.
"Quantas chances desperdicei, quando o que eu mais queria era provar pra todo mundo que eu não precisava provar nada pra ninguém".
E assim a vida ia passando, e o tempo, esse dom mais precioso, escorrendo entre meus dedos, quanto mais eu o quisesse reter.
E o sonho lá dentro, quieto, sem graça, calado com medo de ser novamente massacrado pelo cruel ditador que o acuara contra a parede e o fizera pálido, opaco, quase sem voz.
"Toda força bruta representa nada mais do que um sintoma de fraqueza".
Até que esse ditador - durão, inflexível enquanto observado, mas subserviente a um ser maior, o qual não se abalava pela imagem intimidadora do primeiro - viria, enfim, padecer. O respiro profundo e vigoroso do "sonho" poria fim à matrix, revolucionando todo o sistema interno, literalmente "virando o tabuleiro do xadrez".
Assim, o "sonho", ao mesmo tempo libertador e libertado, jogaria ao mar toda a riqueza acumulada, todo o peso morto, ilusório, caprichoso, que o ditador/capitão acumulara por anos, e que tinha como troféus de suas nobres vitórias. Pobre miserável, tudo o que tinha era seu ouro - seu senhor e escravizador.
Assim, ao mar todo o peso morto, resta-nos o essencial - a jangada, o remo, a fé, o sonho.