Dói, Mas Sou Masoquista
Permito sua aproximação com a senciência do animal prestes a ser marcado com ferro e fogo. Paira ainda nas paredes do quarto toda a angústia catatônica que me inundou e espancou o sono. Desabo em seus braços, escarnecido. O coração capaz de abarcar o mundo de tão aberto. Quero que você vá. Siga seu rumo errante longe de mim para que eu siga o meu.
Não mais nos amolar.
Não mais nos aguentar.
Não mais encher seu saco.
Nossas cabeças têm doído tanto nas últimas horas.
Tanta catarse.
E você deitada assim, mirando o teto com riscos de rímel nas têmporas.
Com o coração escarnecido. Capaz de se desfazer no arrependimento e na mágoa amarga de quem erra.
Te acho tão bonita assim. Se não no limbo que vivi, em algo semelhante.
Irmanamo-nos na dor. Ou na raiva.
Eu sinto raiva. Te ver assim, bonita.
A raiva senciente do animal ofendido em seu sossego.
Aproximo-me. Te ver assim, exposta. Eu, uma raiva cega.
Que se transmuta em desejo. Porque não há sentimento ruim em mim.
Há meu coração, ainda que escarnecido, pulsando essa paixão imensa-intensa.
Na teoria nossos olhos e nossa respiração e nossos temores e nossos fogos e amores se amalgamando na paradoxal simbiótica antítese ambivalente e na prática a unção das bocas em beijos intermitentes cheio de inseguranças (aonde vamos parar com isso? é permitido? por que me sujeito a esse papel? de novo o crime?) na fricção de partes pudendas.
Há certo ineditismo nesse momento, nesse ritual hesitante sem rito. Te tocar escancarada, humanizada. Minha vontade aumenta. E pulsa. Há uma primeira vez em todos esses microssegundos. Arranco pela primeira vez esse pedaço de pano que já arranquei mais de cem vezes. Tocamo-nos nos nossos pontos fracos, nas nossas fontes de dores de cabeça. O intercurso acontece sem que interfiramos. Desliza. Eu sinto tanto você sentindo tanto. União. Por que digladiar se somos tão completos? Acontece o movimento. Relampeja a lembrança do porquê do desentendimento e hesito e logo esqueço e mergulho e me afundo extático. Te sinto te quero te acolho te entendo te perdoo te odeio me odeio te amo tanto tanto.
Inundamo-nos.
Silêncio confortável atravessado pela respiração afogueada.
Carinho. Sinergia. Comunhão.
Rapidamente desembaralho um fluxograma dos porquês de ainda ser.
De ainda estar.
Meus olhos pesam. É possível literalmente morrer de sono?
Fora o cansaço mental.
Mas quero mais. Queremos mais. De novo.
Com ódio, agora. Com tapa na cara. Com a asseguração de que somos predestinados a sermos e porque tudo que é alheio a isso é aquém do mínimo que podemos ter.
Te olhar de baixo. Te sentir em cima e dentro. A vez do barulho daqui invadir a casa dos vizinhos. Com força. E rápido. Com unhas e apertos e dedos e puxões. Somos tanto e somos tudo. Ligação. Explodo sorrindo, recuperando algo que parecia estar perdido.
Ofegantes. Confissões. Peles em flores.
Girassóis.
- Sensação estranha, ruim. Você diz.
- Como?
- De que estou te perdendo.
Silencio.
Uns olhos tão redondos, com as pálpebras inchadas. De tanto dormir ou chorar?
Tão bonita, assim, melindrada.
Por que precisou de um baque para sentir nossa conexão da maneira que sinto?
Outro banho nesse dia do inferno. Milésimo banho em tão poucos meses. Última vez nossa nesse espaço exíguo que me fez ver suas sardas? Última vez que a gente se entreolha quando o sabonete cai? Não sei.
- Quase perdeu. Não era pra você estar aqui. Era a ideia inicial. Mas, como tudo que te engloba, eu não sei. Mistério. Vamos ficar bem.
- Te amo, lindo.
- Vamos ficar bem.
Pearl Jam - Black
02/10/2019