Eu Vou Enganar o Diabo

"Então,

Larga essa merda

E tente ser real".

Noção de Nada - Orgânico.

Silêncio sepulcral. Hálito de tumba. Frio marmóreo. Manhã de domingo tétrica, com sabor de loucura e gosto de morte. Já perdi há horas a noção de que horas podem ser desde que amanheceu. Do lado de cá da casa a luz não muda. O sol não muda, como numa cabine de avião em que ele está sempre no mesmo lugar. Turbulências. Não durmo. Ela dorme. Minha cabeça parece estar entre uma prensa. Ela dorme, sem fim. Dorme um sono comatoso. Não acorda nunca? Continua virada pro lado de lá. Como é que não dói o pescoço? Prefere um torcicolo a ficar de frente comigo? No decorrer das horas infinitas da madruga meu corpo fervilhou e fermentou todos os sentimentos possíveis que um ser humano é capaz de ter: estou exausto. Exaurido. Não saber é o que mais me enlouquece. Seguido desse silêncio andrajoso que se desprende de seus poros com uma cólera fria cujo motivo me é alheio. Seguido da constatação pungente de que todo esforço e abnegação inerentes a esse acordo tácito que tratamos é unilateral. Além da montanha russa que é tudo isso. Sempre. Não há uma estabilidade possível de alicerçar algum tipo de segurança em paz nessa merda?

Ainda virada pra lá.

Lá fora, venta. O que vim fazer nessa cidade fantasma?

O cabelo preto comprido se enrolou em duas voltas no sentido horário e cai em contraste à pele branca das omoplatas. Ontem me ofereceu essas mesmas costas para que eu a beijasse inteira, roçasse a barba, tocasse em cada centímetro cúbico de pele. Extraí disso contorções, gemidos e arrepios.

Hoje essa frieza.

Um iceberg erigido nesse abismo do lençol azul escuro que nos separa. Algumas horas até parecem passar em minhas diligências ao banheiro, à geladeira, à fresta da janela da sala que revela o terreno baldio onde meu cão caga despreocupado.

Eu devia estar com raiva?

Eu deveria estar com raiva?

Tomo um banho demorado.

Há quanto tempo não demoro no banho?

Quantas noções mais eu perdi?

Preciso esfregar esses azulejos. Um dia. Não hoje.

Vou me acalmando conforme a sujeira desce ralo adentro. Ainda que eu expurgue aqui toda a parte podre desse cancro do agora enquanto racionalizo o que sinto, sei que terei muito a lidar em mim depois.

Começo a entender meus erros e excessos.

Uma vergonha pueril esquenta meu rosto.

Meus erros, tantos.

Uma bagunça. Mas justificáveis dessa forma?

Não. Mutuamente excludentes. A água cai e eu decido. Seguir só.

Esta é uma manhã para sempre.

Que já adquiriu aquela aura de que tudo que acontecer daqui em diante é pela última vez.

Ocorre-me a velha ideia de me mudar de casa. De novo, fugir.

Me enxugo e me acalmo. Abro algumas janelas, bebo água, como frutas. Importante estar nutrido para lidar com tergiversações.

Renovado, deito.

Ela trocou o lado. Olha pra cá. Pra mim, pra parede, pro cabide. Deu as costas à parca luz dos fundos da casa. Ainda de batom. Nunca amanheceu de batom. Chegou e deitou assim, com a cara carrancuda e com a boca besuntada, amarrada e inatingível. Tudo bem. Alisava confuso as maçãs do rosto adormecidas no Coisas Demais e faço o mesmo agora. Sereno estou. Tanto cuidado doado. Está tudo bem, ainda que meus olhos ardam de sono e sal.

Eu deveria estar com raiva.

Enfim, acorda com o cafuné. Os vizinhos lavam a louça do almoço e ela se remexe acordando, a bela adormecida contemporânea e feminista. Abre os olhos, mas recusa a me olhar. Passam-se os minutos; quantos, não sei. Talhares batendo, o arrastar monótono das pontas da cortina no chão. Nos meus fones as mesmas dez músicas mais melancólicas que conheço se repetem e repetem e repetem. Através do buracos onde passa o varão a luz projeta no teto uma carranca de demônio que se arreganha e se retrai. Me perco nisso por um tempo. Aponto o que vejo. Não vê o mesmo que eu. Me ergo e, corporificando a calma de monge tibetano que sinto, sento em posição de meditação. Não sei se é cedo pra falar. Acordar e ser assim, interpelada. Desagradável. A sentença de uma música que há muito não ouço perpassa minha cabeça. "It meant the world to hold a bruising faith". O trecho de uma outra que definiu todas as manhãs acordando juntos no período desse enlace maluco também. "Oh, how I love you! And in the evening, when we are sleeping". Respiro. Olho o diabo no teto. E falo.

O amor dói.

Smashing Pumpkins - To Sheila

02/10/2019

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 02/10/2019
Reeditado em 02/10/2019
Código do texto: T6759519
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