Como Você é Burro
Os sons parecem amplificados nesse silêncio nauseabundo que me engolfa. O ronco do motor da moto a cem por hora cortando a névoa fria e espessa e úmida implorando pela troca de óleo, as chaves diversas no molho tilintando no guidão, a viseira quebrada pendurada rangendo no capacete extra atravessado no meu braço no caminho oposto. Tudo que é inanimado que me circunda ganhou voz e grita comigo. Ainda que eu não tenha anunciado sua agora definitiva ausência às taças, às velas, aos pratos aos copos às fronhas aos cabides ao sofá ao box do banheiro ao pente que tanto se enroscou no seu cabelo em manhãs de atraso sujando todo o meu banheiro com abundantes fios de cabelo, tudo nessa casa a ressoa, já, tão lúgubre e prematuramente (prematuramente?). O que é aquilo que vejo no espelho? O semblante calmo & sereno de quem tem um círculo dantesco do inferno em atividade dentro da cabeça. O sangue seco em padrão de esguicho ainda no lençol salta aos olhos. O gato, me percebendo quieto & metódico como quem anda em campo minado, me persegue pela casa, ainda que o pote de ração esteja cheio. "Como é que posso te falar que você perdeu aquele colo quente, aquele par, as unhas compridas e escarlates que você amava morder?". Como é que posso me falar e me convencer que me escapou em uma inércia estagnada e de uma maneira tão ininteligível e bêbada O alguém; o cheiro, o gosto, o tato, a pele fervente, a dor abdominal oriunda do riso que rasgava madrugadas [esmoreço conforme contabilizo as perdas], os silêncios com cabeças afundadas no mesmo travesseiro, o silêncio sendo conspurcado pela fricção de palmas das mãos em rosto, em barba desgrenhada crescendo, palma da mão suprimindo a franja da testa, pelo estalido de beijos sem fim [esmoreço pois eram tantos sentidos sendo sentidos simultânea-indefinida-infinitamente, pequeno universo que éramos sendo orbitados por chicotes garrafas d'água embalagens de chocolate garrafas de vinho lençóis manchados molhados pelas catadupas de fluídos vesiculares uterinos almiscarados], de saliva sem fim, de fome sem fim, de toques e contemplação e sorrisos e desejos indizíveis e imorais e vontades sem fim e tudo acaba; boca maldita, condutas precedentes se imiscuindo no agora como um câncer. Percebo que me encolho na cama na tentativa e esperança vã de adormecer rápido e de acordar [sem ninguém me olhando, sem ninguém na ponta da cama olhando o celular, sem ninguém com bochechas que me enlouqueçam] com o coração menos apertado e dolorido daqui uma ou duas horas com a lucidez resignada de quem perdeu uma perna, me encolho me vendo num espelho de teto imaginário como uma espiral de Fibonacci de dor e incredulidade e despeito e inveja e revolta e amargor e ódio e amor adoecido, esmaecido, obliterado, perpetuamente inútil, o amor e eu, palavra e pessoa destituídas de sentido, vou apagando, com o gato se encimando sobre meu ombro me olhando ronronando com as unhas me afofando, penso e espero que.
Her OST - Morning Talk Supersymmetry