Longa noite, moralidade é identidade

Mais uma longa noite, o céu aparece silencioso e estrelado, e me convida a pensar sobre a vida. Vejo as estrelas distantes, enquanto a noite passa pela escuridão, sem que a perceba.

Eu penso em mim mesmo, como um indivíduo, na verdade, fundamentalmente como um indivíduo, indivisível, único. A individualidade é a minha primeira identidade, assim como a sua, de nossas mães, de minha gatinha, de uma planta, do homem "mais importante" ao "menos importante". Ao me definir ou, ao me reconhecer como um indivíduo, imediatamente me reconheço como vida. Antes de eu ser filho ou pai, tímido ou sociável, confiante ou medroso, de direita ou de esquerda, antes de reconhecer minha biologia e toma-la como minha realidade absoluta, eu também me reconheço por minhas bases [pelo meu começo], que não são apenas as minhas, por constituírem todos os seres vivos, dos mais evoluídos aos mais primitivos. No silêncio da madrugada, eu penso nas minhas identidades como portais de existência, de vivência, de expressão, de identificação e de conexão com o outro e com o mundo. No meu modo de ser, o que consegui construir até agora. Na minha moralidade: no meu jeito de julgar minhas ações, de lidar com o outro e comigo mesmo. Minha gata aparece para beber água, do lado da janela onde estou, iluminada apenas pela prata do luar. Ela tem sido objeto de minha observação sobre as diferenças médias de comportamento ou moralidade, entre humanos e os outros seres vivos. Tento pensar como ela, me colocar em sua perspectiva, empaticamente, no lugar de sua pequena alma, buscando entender seu código instintivo de comportamento. Eu percebo que ela está sempre ao meu lado, me identificando como igual, talvez como um felino desajeitado, mas como igual, da mesma espécie que a do seu coração. Seu amor puro, pra mim, sem curvas, está corretamente vinculado aos meus cuidados com ela, desde servir de sofá humano e trocar calores, até como prestador de carinho grátis e comida fresca. Mas, ela não tem o mesmo apreço em relação à formiga microscópica, que nem vê quando esmaga com sua patinha branca e aveludada. Nem em relação ao passarinho que pensa que é um brinquedo em suas garras de felina. Também não se importa com o que come, qual animal que foi triturado e transformado em patê. Eu sim. Ela não se difere de um monte de seres vivos e, ainda que a ame muito, eu tenho que admitir que sua virtuosidade instintiva para comigo é especial e única, porém conveniente, porque com os indivíduos de outras espécies e mesmo com os seus, ela age pragmaticamente, sempre guiada por seus instintos. O que a move para compartilhar o que lhe resta de vida com a minha, também a move para caçar passarinho.

Quando se olha ao espelho, nem consegue ver o quão bela e perfeita é. Sinto inveja, pois gostaria de ser assim, de ter apenas o agora como o tempo, sem as saudades do passado e o fatalismo do futuro. De ter apenas a preocupação de dormir mais do que ficar acordado, de ser adorado por seres humanos de boa índole. Eu, que sou tão preocupado comigo, com a minha aparência, com a opinião dos outros, devido à minha autoconsciência excessiva, mas parte indivisível de mim, sofro uma série de efeitos indesejáveis como a descamação da pele do meu rosto, sensível demais para o rei sol que doura e queima terras tropicais bem como para o calor tenso que emana dessas almas que me rodeiam e me afetam. Se eu parar de pensar tanto, de me preocupar, talvez recobre minha pele de pêssego recém-colhido que eu tinha quando eu era criança, quando não era cativo do próprio espelho. Minha gata não pode se reconhecer plenamente como um indivíduo ainda que vivencie seu egoísmo conveniente. Ela, fundamentalmente, se reconhece em seu comportamento, por suas sensações incompartilháveis, assim como eu faço. Mas eu também me reconheço por mim mesmo, pelas identidades que resultam no meu comportamento. Suas identidades são vividas sem serem auto- identificadas e, portanto, sem vaidades.

Ela vive mais o seu espaço particular, se identificando direta e tacitamente por ele, por suas características instintivas, tratando-as como incontornáveis ou inevitáveis, resultando em uma supernaturalidade. Ao contrário de um mosaico humano de identidades, vezes excessivo ou confuso, sua consciência de si é muito mais simples. Claro que nossas interações produzem canais de identificação diferentes, se não identidades puramente emanadas do indivíduo, então, derivações ou combinações com outros indivíduos. Portanto, a sua identidade em conjunto com a minha é de amor ou confiança, ao passo que a sua identidade com qualquer passarinho é quase sempre com base no sentimento oposto. A moralidade é a identidade, de si e desta para com o outro. A identidade é um espectro de percepção de igualdade e diferença, de parcialidade e essência, de conexão e distância ou de atrito. Por exemplo, a minha sensação de maior semelhança com um anoitecer ou com um começo de manhã tranquilo, do que com um dia ensolarado e barulhento. A autoconsciência também é o processo em que a vivência mais íntima ou realista com o tempo que se vive, se torna parte integral da experiência que é a vida. É basicamente o desnudamento da própria intimidade existencial, que não está facilmente disponível para as outras formas de vida. Como eu falei em uma poesia, a autoconsciência é basicamente como estar em uma cirurgia sem anestesia, diga-se, uma cirurgia, a vida, que nunca dá certo. Se todo ser humano pensasse como eu ou pudesse me alcançar onde eu estou hoje, então, toda a sorte de alienação cairia por terra, com os seus espelhos de vaidade se despedaçando ao chão, e não é por falta de humildade, apesar de parecer com essas palavras. Muito pelo contrário, porque, por minha intuição minimalista, acredito ter encontrado dois dos erros mais fundamentais de precisão com a verdade, que chamei de alienações naturais e que elas os explicam melhor do que eu mesmo poderia.

A moralidade ou o comportamento de minha gata bem como de praticamente toda forma de vida, me incluindo, é claro, é produto predominante dessas duas alienações naturais, que é um termo novo, que eu inventei, para me referir à incapacidade de seres desprovidos de plena autoconsciência, incluindo boa parte da humanidade, de se reconhecerem ao derradeiro espelho, por suas primeiras e fundamentais identidades, indivíduo e vida e, concomitantemente, fazer o mesmo em relação aos outros seres vivos, tal como eu consigo ou aprendi a fazer com a formiga que ela pisa ou com o passarinho que ela caça.

A primeira alienação natural se refere à hierarquia básica de todas as coisas que existem, inclusive a vida. A organização de qualquer coisa individual tem o seu meio ou núcleo, seu entorno e sua camada em contato com o ambiente exterior. A constituição da consciência individual, isto é, da vida, também obedece ao mesmo princípio. Seu meio é a consciência de sua individualidade. É possível sugerir que nos primórdios da vida, esta apenas podia ser ou ter como identidades, ser indivíduo e vida. Ao longo de sua evolução, o seu centro foi sendo deslocado para a sua camada mais superficial, de atrito com sua realidade de adaptação ou existência. Tal como se, ao invés dos pés, se passasse a caminhar com as mãos ou mesmo se deixando ao vento. A vida e claro também a humana, não caminha com suas bases reais, absolutas, que são suas duas primeiras identidades, ainda que as use, por serem inevitáveis, mas como coadjuvantes e não como naturais protagonistas.

Os processos adaptativo e, portanto, evolutivo, até à filosofia humana, deslocaram o centro fundamental de consciência do indivíduo para se concentrar em seu contexto biológico ou particular de adaptação. Por exemplo, uma espécie que especializou-se no parasitismo tem como seu centro de referência absoluta sobre o que é a vida ou o seu viver seu próprio modo [particular] de adaptação.

Bem, é comum desprezarmos o que é básico, já que a evolução, por sua natureza excessivamente aglutinadora, banaliza a expressão dos sentidos ou portais de sensação e percepção, quando um novo sentido substitui ou desloca o existente da centralidade da consciência, tal como quando uma camada de terra nova vai sendo assentada pelo tempo em cima de um solo de outrora. Por exemplo, algumas das profissões mais importantes, que mantêm as sociedades funcionando, em suas bases, como as agrícolas, são sumariamente rebaixadas em grau de relevância. O mais importante pra nós, o que vem primeiro e por último que todo o resto, por ser tão óbvio, constante, entranhado, acaba por ser tratado como sem importância, como parte natural da paisagem. Tratamos como inevitável e banal o que é o mais fundamental. A intensidade da identidade tem efeito na capacidade de conexão. Por essas alienações naturais, de confundir periferia com centro, o ser vivo também se perde do centro da realidade, que é justamente a si mesmo, mas não em relação ao seu estado particular ou específico de existência. Ele se perde do geral, do universal, que se compreende por sua essência, ao centralizar-se em seu particular.

A individualidade, em sua pureza de expressão, é o portal que nos conecta às profundezas da realidade, por sua generalidade ou, enquanto origem identitária [ ou identidade da origem], enquanto que as nossas identidades particulares evidentemente nos conectam às suas respectivas particularidades. Por exemplo, o racismo, historicamente exacerbado pelo nazismo, mostra um claro processo de extrema alienação existencial ou deslocamento de importância de identidades e, portanto, de percepções, das mais centrais ou gerais às mais particulares. Da universalidade da vida e de sua individualidade, para a particularidade de um grupo racial, que é produto de processos evolutivos localizados. A universalidade é o único caminho decente para a moralidade bem como para a verdade que, de fato, representa, que é uma verdade por seu próprio domínio, cientificamente demonstrável, que não é mero reflexo de um sentimento particular e, portanto, condenável à limitação de uma subjetividade.

A primeira alienação resulta em outra. O deslocamento, do centro para a periferia de consciência, de identidades, também distorce a percepção do indivíduo em relação ao mundo pois, ao tomar seu modo particularizado de existência com total conformidade ou super- naturalização, também passa a determina-lo como o único mundo existente ou, como o centro de toda realidade. Ao invés de reconhecer uma realidade da totalidade e sua perspectiva como parte dela, reconhece sua perspectiva como a totalidade da realidade e ele, em seu centro. Antes da autoconsciência, o indivíduo se reconhece pelo seu comportamento, diga-se, instintivo e, consequentemente o seu mundo. Com a autoconsciência, a identidade do indivíduo não é apenas pelo que faz mas como é, daí a vaidade inexistente de minha linda gata em contraste ao meu narcisismo, isto é, de um ser humano esteticamente polêmico. Nada mais alienante do que considerar a subjetividade como totalidade se são antônimos. Ao invés do centro emanar-se em direção ao seu corpo de contato com o exterior, ainda que o faça, inevitavelmente, na vida, é a "pele" que "dá as ordens" ao interior, isto é, o periférico que se coloca como o centro.

Minha gata volta para o quarto enquanto eu continuo com o meu doce calvário. Ela irá repousar como tantas vezes por dia, sem saber que é um indivíduo finito, frágil, condenado à morte. Seu compromisso é com a rotina do seu breve mundo de existência em que é a rainha. Me amará amanhã como hoje, até chegar um dia em que a perderei pra sempre enquanto eu continuo a me perder também.

Deixo-a em paz e volto meu olhar à intragável humanidade, apoteose da vida em sofisticação e também quanto aos seus vícios. Se as duas alienações naturais são [ou estão] universais à vida, elas adquirem potência máxima com a humanidade. Justamente o confronto direto dela com a realidade, superando o totalitarismo de sua subjetividade, a levou à negação do seu próprio destino e ao abraço do animalismo mitológico ao invés do existencialismo científico. A religião, em seu religar ao divino, à essência da realidade, é praticamente o oposto do que tem sido, enquanto mitologia pois, a partir desta, o ser humano volta a agir como quando não tinha autoconsciência, enfurnado nessas duas alienações naturais.. bem, na verdade, a maioria dos seres humanos não estão plenamente providos da mesma, ainda que não haja comparação próxima com qualquer outra espécie, quanto ao alcance de sua expressão. Para explicar o fenômeno da crença humana, de maneira pretensiosamente técnica, penso e divido o comportamento em: sensação e percepção, firmando nessa perspectiva básica de consciência.

A sensação é fruto da reação, de algo que parcamente pode ser controlado. Por exemplo, a sensação de dor, quando somos surpreendidos por uma interação física que resulta nela. É possível, com a percepção, prever potenciais perigos que possam resultar na dor física e também na psíquica e, com essa estratégia de fuga, buscar reduzir esses riscos. Aliás, uma das missões da sabedoria, resultantes dos conhecimentos existenciais é, justamente, o de suprimir ao máximo que for possível o indesejável encontro com qualquer tipo insuportável de dor, ainda que sua expressão por nossa sensação exprima a sua verdade, que é o seu conhecimento. (Sua verdade: de desordem abrupta entre forças que resulta na dor). A percepção é a expressão analítica da sensação. Pelos sentidos mais evoluídos, como a visão e a audição, podemos perceber mais, isto é, expandir ou alongar a sensação que é uma reação. Pois vos digo, embaixo de uma nuvem rala que apareceu neste céu onde o meu pensamento voa, que é regra de nossa espécie ou comum à maioria, a sensação que nos encaminha inexoravelmente aos conhecimentos existenciais, essenciais ou, religiosos, queiramos ou não, de que somos antes de tudo, indivíduos e vidas, de que somos mortais, frágeis, envoltos numa imensidão absoluta, e todas as aglutinações que podem ser produzidas a partir dessas conclusões iniciais e fundamentais, por exemplo, que qualquer esboço de orgulho, teleguiado na busca de uma vitória mundana, vale exatamente o mesmo que um vento frio numa noite longa já que, no final das contas, voltaremos ao zero, depois de termos sido um inteiro absoluto. Sentimos essas verdades profundas e ao mesmo tempo tão simples mas, pela percepção, isto é, justamente pela inteligência mais evoluída, e de adaptação, pelo ápice da capacidade intelectual, tornou-se possível e rotineiro falsificar este sentimento que emana de todo coração genuinamente humano, convidando a humanidade, em peso, a continuar em sua infância, abraçando sua covardia, que esconde a verdade da escuridão. Sentimos, em sua maioria, o peso da realidade que não é a nossa mas, a percepção tão pouco disciplinada de muitos, não aguenta essa interação e foge ou, reinterpreta a realidade ao seu sabor preferido. Se as outras espécies de vida não podem separar sensação de percepção, a humanidade é a única cognitivamente capaz disso, e a multiplicação de mitologias que escondem a única filosofia, que é a verdadeira religião, é uma colossal evidência desse talento criativo que, no entanto, tem sido usado, tanto para a ilusão quanto para a opressão, isto se toda opressão de natureza parasita precisa de uma propaganda enganosa para acalmar o sapo enquanto ele é cozido.

Percebe-se que a deturpação da religião pela mitologia, é o primeiro sinal de que a humanidade tem evoluído para o abraço de mentiras que confortam seu coração imaturo ao invés de continuar com esse processo de expansão da consciência e, portanto, de compreensão da realidade e vivência por ela. Se, conscientemente ou não, a maioria daqueles que os mais filosoficamente despertos chamam de irmãos, estão, neste exato momento, em que o sol ainda se esconde por aqui, sonhando com carneirinhos em forma de cifrão ou, do outro lado do mundo, batendo perna nas ruas de Tóquio, em busca da mais nova moda ou enquadrados em uma rotina excessiva de trabalho, dentro de labirintos de distração e opressão que negam essas verdades absolutas, que podemos ver enfileiradas em uma reta perfeita ao entardecer. Esses humanos que se julgam pela classe social, raça ou nacionalidade, e não como indivíduos e vidas, primeira e fundamentalmente. Para eles, suas individualidades começam onde não começam, nem onde terminam. São naturalmente frívolos, porque a evolução da vida é a banalização do básico, até chegar ao nível em que a espécie se desvia tanto daquele que é o único caminho da vida, o conhecimento [especialmente o mais importante, o essencial], que entra em extinção.

Mas, enquanto continuarem a achar que a humanidade (e, na verdade, eles mesmos) vêm antes que o resto do planeta, a falência ecológica seguirá sua marcha fúnebre. E enquanto as identidades de expressão, identificação e conexão, não forem reconhecidas corretamente, começando pelas primeiras, o centro não voltar a ser o centro, os pés ou as bases sentindo o chão da hiper-realidade, continuaremos de cabeça para baixo, dando maior importância a cédulas de papel do que ao irmão que dorme ao lado, vivendo nessas duas, que são as mais elementares das mentiras ou alienações..