Sombras
Eu estou viva.
Foi quase estranho constatar isso, ao retornar para casa. O anoitecer está fresco, a folhagem das árvores faz desenhos no céu de chumbo. Desço meus olhos ao asfalto, sinto areia nos meus pés presos ao chinelo, meus passos misturam-se aos das pessoas que vêm e vão na rua. Estamos vivos, nestes segundos. Decerto vivo tanto quanto todas essas pessoas, seguindo meu rumo incerto, amarrada às minhas memórias, buscando um sentido, um significado nos pormenores do que sou, justificando falhas e inventando virtudes que não tenho.
Um sentido a tudo. Meus olhos baixos reconhecem o contorno da minha sombra à luz alaranjada dos postes. Essa forma humanoide me parece estranha, falta-lhe algo. Penso no que lhe falta até que concentro-me nos dedos de uma mão. Cá está, eles não deveriam estar soltos. Por que não? Porque normalmente estão agarrados aos de outra mão.
Ah, é a sina dos românticos, a de enxergar suas incompletudes neste mundo já feito homem. Seja lá fruto da cultura, dos ideais, das necessidades intrínsecas da alma, lá vai o romântico, dando todo o sentido da própria vida ao contorno da sombra de uma mão que sente falta de outro contorno, da sombra que preenche os espaços da luz entre os dedos e transforma uma criatura disforme em outra mais disforme ainda, posto que é dupla e única ao mesmo tempo. Talvez a alma dos que amam seja como a sombra à luz dos postes, ausente de sentido em sua forma disforme, mas que tudo é enquanto coisa sob as luzes do mundo. Estarei viva enquanto esta sombra significar algo nos retornos para casa, enquanto lembrar-me desta ausência, da incompletude da forma.
Melhor dizendo, estarei viva enquanto perdurar este amor.