“TRÊS MORTES SEMANAIS E O CARNAVAL DA VIDA COMENDO NO CENTRO”

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Estou sentado num canto de uma enorme livraria, num shopping em Salvador, Bahia. Com fones de ouvido, Raul Seixas tocando e a graça de ser um esquecido. Não há nada em mim que se destaque, estamos em 2012.

Minha namorada roda pelas lojas com sua filha pequena e come doces em lanchonetes, comprando tudo o que lhes conveniente. Enquanto nada me combina, nada me agrada, nada me alegra, anima ou me comove. Assim como nada me entristece.

É, na verdade... apenas a tristeza intrínseca na verdade de se saber substituível, como um vazo. Se pudessem pôr um fone de ouvido acoplado num vazo de flores vazio, tocando Raul ou Pink Floyd, por - no mínimo - oito horas seguidas, seria eu.

O que me lembro mais, daquele momento, que se repetiu por mais uns dois anos... era a qualidade daquele sofá na Livraria Saraiva. Eu pouco conseguia ler alguma coisa. Apenas ficava aguardando a vida de outras pessoas terminarem de acontecer. Apenas aguardando a hora de engolir uma comida, foder e dormir. Raulzito e Pink Floyd estavam sempre na trilha de fundo. Enquanto a vida alheia me guiava pelas luzes da cidade e pelas lojas... e me guiava dentro de táxis e ônibus lotados com cheiro de merda e morte.

Às vezes - antes dela chegar - eu entrava num barzinho muito caro, chique... e escondido num lugar afastado do shopping. Às vezes chego a pensar que ele na verdade não existia e que talvez eu estivesse delirando numa pracinha ou no estacionamento do shopping segurando apenas um copo d'água e o meu telefone. Então eu pedia uma dose (que era metade de um copo) de um licor de cacau cheio "disso e daquilo", numa garrafa mais esnobe que o garçom que me atendia. Um licor preto com aparência achocolatada que valia muito mais que minhas calças jeans e tênis All-Stars.

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O tênis All-Stars me apertava os pés. Mas, PRETO em cidade grande precisa ter sapato bom e camisa de marca, pra não ser confundido com mendigos, traficantes e ladrões.

Eu tirava meu caderninho do bolso e pedia uma caneta ao garçom, por pura marra de escritor inseguro, querendo se mostrar ao mundo que escreve e que não é um vagabundo, e ele nem me notava.

Os poemas eram HORRÍVEIS, da pior qualidade de escrita, métrica e o cacete. Eram feitos pra ela. Os poemas eram horríveis e NÃO eram horríveis por serem pra ela. Eles eram apenas mal escritos. Nada acontecia.

Pink Floyd e Rauzito dividiam os turnos e isso tudo de fantástico na vida. Nada acontecia. E elas rodopiavam no shopping. Faz um bom tempo que não vejo tanta luz e não ando em tão enorme construções. O licor era gostoso, mas agora eu prefiro chá e café. Tinha alguma coisa naquele licor... alguma vida naquele álcool e naquela tonelada de açúcar. Alguma vida e alguma VONTADE. Que naturalmente não estava conseguindo ter...

O licor de cacau era doce e amargo, com gosto de boa vida. E ele - assim como a vida - durava cerca de dez minutos, isso contando com "toda a poesia" escrita. Em dosagens que variavam de um à dois dias da semana, competindo com doses de vodca barata em barzinho e doses de conhaque em pontos de ônibus. A verdadeira escrita queria sair... mas a gente não consegue sair de um lugar, se a gente nem sabe dizer QUE LUGAR É ESSE. Você não precisa saber pra onde vai, mas precisa saber aonde está. E se quer mesmo, ficar. Entre aumento de doses e diminuição de critérios de sabor, eu já estava em meados de 2013.

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... estamos em 2019.

Ainda me vejo rodeado de livros e de discos. Mas agora sou eu que vendo e organizo todos os eles. Eu vejo cifrões e nada de literatura, aqui dentro. A literatura está dentro dos livros que escondo no meu quarto. Eu gasto um caderno por semana.

Minha escrita anda magnífica e bem humorada. Ninguém é capaz de provocar maré de azar ou de sorte em escritor, senão ele mesmo.

Minha filha está morando em Salvador e eu moro em Lençóis, tenho DUAS GATINHAS que me fazem companhia em casa. Uma fotografia de Mick Jagger me encara sorrindo. Eu sinto como se o sorriso de Mick fosse a coisa mais linda que vi nesta cidade desde que cheguei, no início de 2017.

Mulheres não me agradam aqui. Nem festas. Eu conheço pessoas pela internet, mas a verdade é que eu enjoei da situação de estar apaixonado ou convivendo com alguém. Estamos em 2019. Tudo acontece, o tempo todo, tudo acontece... o tempo inteiro.

Pink Floyd ainda toca. Uma canção que todo mundo canta e conhece... e que todo mundo canta com a música, num inglês sempre incorreto e ainda assim todo mundo compreende sua mensagem, e seu propósito e todo mundo se emociona e se sente VIVO quando ela toca.

Uma das gatas dorme com o ouvido em cima de uma das caixas de som.

Enquanto a outra se esfrega em meu caderno, tentando me fazer parar de escrever, pois já está tarde e é hora de fechar a loja. Mick Jagger me olha novamente, sorrindo... e eu penso comigo, como a vida pode MESMO ser escrota e também fabulosa. Um grandessíssimo poço de merda mole nos cobrindo até o pescoço, mas sempre com uma cordinha super acessível que nos leva pro céu.