Orfeu e Eurídice
(Suplemento a “Viagem por São Paulo”)
I: EXPOSIÇÃO PRELIMINAR
Muito antes que o mundo viesse a existir, a triste noção de perda já fora infligida no orgulhoso Satã, expulso do convívio de Deus por sua vaidade; por sua influência, nossos patriarcas também acabariam por perder uma vida desprovida de atribulações no Jardim do Éden, sendo condenados a lutar por seu sustento sujeitos às hostilidades e intempéries do clima de um novo, mas não necessariamente agradável, mundo sob um Sol fadado a iluminar séculos e mais séculos de efemérides – vê-se, a partir daí, que a grande força motriz da Humanidade passou a ser esta mesma noção de perda e decadência moral, daí o posterior anseio pelo retorno de uma hipotética “Idade de Ouro” onde todas as perdas seriam sanadas e a bondade de Deus triunfaria sobre o Mal.
A Poesia não funciona de forma diferente: todos os grandes escritores precisaram perder algo para que atingissem o acmé de seu gênio. Milton não escreveria o “Paraíso perdido” sem que precisasse ficar cego, Boécio não escreveria a “Consolação da Filosofia” se não estivesse às beiras de perder a vida, Tasso não seria o genioso autor da “Jerusalém libertada” se não perdesse a sanidade (tanto é que, ao tentar reescrever seu grande épico estando mais ou menos recuperado, acabou por arruiná-lo) e, se fosse eu listar todos aqueles que se perderam por amor, acabaria por escrever um extensíssimo tomo. Creio, não só por tais casos célebres do mundo das Letras como por experiências pessoais minhas, que sem uma troca equivalente a ser oferecida às Musas como tributo, o Talento não tem como florescer na alma de quem quer verdadeiramente sentir a Poesia.
Já houve quem dissesse que a Poesia por si só é uma forma de insanidade, e seja lá quem for não está de todo errado: o verdadeiro labor poético é um frenesi dionisíaco, irrefreável, que vem das profundezas do coração – e orientando-se por tal assertiva é que pode-se descobrir quem é digno de ser chamado “Poeta” e quem não o é. Por mais trágico que possa parecer, sofrimento e intelecto sempre andam lado a lado, confirmando duas faces de uma mesma moeda: inteligência não traz, necessariamente, felicidade, e quem nunca sofreu não sabe o que é viver. Cito um provérbio do qual gosto muito e que já apareceu várias e várias vezes em alguns de meus trabalhos anteriores:
“Arte oriunda da alegria é embuste; da tristeza, refúgio.”
Dele faço, então, a seguinte glosa:
Schopenhauer já dizia que o otimismo é um dos maiores sarcasmos a serem dirigidos ante a Existência. O cúmulo da desonestidade intelectual é disseminar um universo de frivolidades na forma de criação poética quando o sofrimento existe e não pode ser ignorado; o sofrimento que fortifica é mitigado em prol de um frívolo escapismo, que não é o mesmo que o “refúgio” da arte pela tristeza sugere – refúgio este que consiste na total aceitação do fato que o sofrimento é nosso irmão e não devemos relutar em se tratando de sua existência e necessidade. Um modo de escapismo, portanto, é o da Ilusão; o segundo é o do retiro dentro das profundezas do próprio Ser. O primeiro nem sempre produz bons frutos, mas tendo eu me rendido às duas formas ante as perdas irreparáveis às quais fui sujeito, posso garantir que, apesar da têmpera recebida por minha Obra desta mistura, não sei opinar qual das duas teve suas consequências mais dignas de comiseração.
II: LOUCURA E INOCÊNCIA
Dentre tantas formas de perda, destaco duas como aquelas que mais me fascinam por suas consequências encantadoramente trágicas: a perda de inocência e a perda da sanidade.
O cérebro humano é uma ferramenta intrigante, e a mais ínfima alteração pode interferir com seu funcionamento; entretanto, este mesmo descompasso tem um quê de solene – quase como se a sinceridade fosse proveniente da loucura e não do siso. Embaralhada entre os delírios de um cérebro alterado, a verdade sai da boca de um louco quase como um oráculo: num mundo populado por pessoas de mau caráter, Dom Quixote é o único a manter-se bondoso e íntegro, ainda que sua pureza de coração tenha notas de um juízo precário advindo de uma tênue percepção da realidade. O contraste entre o encanto e a tragédia da insanidade, pelo menos assim acredito eu, é mais proeminente se a vítima é uma mulher jovem – e bela.
A atratividade feminina de uma mulher fornece um duplo chocante contraposta aos frenesis da insânia; desta forma penso quando contemplo uma das mais infelizmente malfadadas personagens de Shakespeare, Ofélia, levada ao desequilíbrio das faculdades mentais por – exatamente! – as perdas de seu pai e de seu amado Hamlet. Quase que numa autocaricatura de sua condição feminil, ela salta, canta, seu rosto deforma-se num esgar de ironia – não muito tempo depois acaba por afogar-se, cercada de flores, irremediavelmente louca, mas de virgindade incorrupta.
Ofélia foi minha primeira obsessão por um ser virginal, envolto num sono profundo, similar ao da morte; meu grande anseio, então, passou a ser uma das duas alternativas – ou daria eu a mão a este ser e com ele dormiria, ou ao meu toque curativo ele despertaria, esquecendo-se de tudo aquilo que ocorreu em sua vida antes de conhecer-me, amando-me por toda a eternidade. Coincidentemente, minha atração pela perda de inocência é oriunda do fado de outro personagem literário, morto sob circunstâncias similarmente tétricas.
Na trilogia de romances fantásticos “Gormenghast”, de Mervyn Peake, temos Lady Fuchsia Groan, a filha primogênita da epônima dinastia que governa os domínios do Castelo de Gormenghast. Como os estatutos da Corte não permitem que mulheres assumam o trono, Lady Fuchsia é visivelmente negligenciada pelos pais, passando toda a sua adolescência praticamente a sós – uma garota livre, enclausurada em seu próprio mundo de fantasia e cujos caprichos ninguém pode refrear. O maior desejo de Lady Fuchsia é o escapismo: ao decorrer de uma parte substancial do primeiro livro da trilogia, somos agraciados com seus pensamentos e aspirações tanto em voz alta quanto por intermédio do narrador onisciente. Proclama ela que quer atear fogo ao castelo, fugir a uma outra terra distante onde ninguém a conhece e ser reverenciada por um príncipe encantado de contos de fadas – flanando em sonhos por esta infância eterna, Lady Fuchsia não conhece nem o Mal, nem a vida real.
Tal quadro perdura até que o vilão Steerpike, que tem o objetivo de ascender socialmente nas esferas do castelo, resolve seduzir Lady Fuchsia para seu proveito próprio, introduzindo a garota a seu primeiro amor real. Ela titubeia em amá-lo a princípio, mas logo rende-se a seu coração; seu amor, no entanto, é juvenil e incompleto – e mesmo quando o vilão é descoberto, e é revelado que ele nunca a amou, sua imagem permanece insuperável no coração da menina, que, agora conhecendo o Mal e a vida real, não consegue processá-los, e suicida-se afogada, não mais capaz de voltar à sua inocência original.
Acho belo uma pessoa que quer apegar-se às últimas fibras de um sonho desfeito – e assim retornamos à força motriz da Perda. “Tanto nos atemos, necessitando realizar todos os sonhos, substituir todos os pesadelos, apagar todas as lágrimas”…! Mas no fim os idílicos sonhos da Inocência permanecem tão distantes… tanto quanto o Jardim do Éden atualmente nos é. Não interrompa, ó leitor, os devaneios de alguém que, em falta de um futuro, tem apenas seu passado a consolar-lhe! Enxugue suas lágrimas, ouça suas expostulações, mas jamais tente apagar os sonhos que o mantêm… Bem-aventurados são aqueles que sonham, pois o Sofrimento é seu irmão e não seu algoz.
Desçamos, no entanto, para um patamar mais baixo – e mais íntimo: é de mim mesmo que haverei de discorrer. Deponha uma flor aos pés de Ofélia e Lady Fuchsia, leitor caridoso, e sigamos a uma nova paragem de nosso itinerário.
III: “IDOLE DE MES INSOMNIES! OBSESSION DE MES NUITS!”
Quando falo sobre Nelly é sempre como se mencionasse alguma arcana divindade de tempos antediluvianos: em meu círculo de amigos, desde que nos conhecemos a mera menção de seu nome fazia com que os corações dos presentes se enchessem de reverência. (Tanto é que ainda agora julgo-me indigno de escrevê-lo com todas as letras, preferindo usar sua alcunha fictícia da “Viagem por São Paulo”.) Foi um laço de perda que nos uniu, e a única coisa que ainda temos em comum atualmente é – a perda. Nossas perdas, e como com elas lidamos, são um tanto quanto diferentes porém, e para explicar o efeito que esta perda surtiu em meu caráter devo erguer por um instante o véu da Ficção, e cometer o sacrilégio de fazer uma ou outra suposição colocando palavras e ideias na boca de uma mulher tão importante e inspiradora a mim.
A conheci quando ambos éramos muito, muito jovens; contava eu com 15 anos, e ela 13. Nada há que possa ser dito a meu respeito sobre como era eu naquele tempo que não foi escrito na “Viagem por São Paulo”; já sobre o caráter de Nelly é importante elucidar um ou outro aspecto.
Recordo-me de uma circunstância muito divertida sobre nosso primeiro encontro; pode ser que ela própria não se lembre, mas minha memória é a “rival do Tempo” e nada pode retirar de suas mãos os instrumentos dos quais se vale para trazer-me tanto as alegrias quanto os pesares de meu passado. Ela mentira para mim dizendo que tinha 17 anos (sob o pretexto de achar que a menosprezaria devido à pouca idade! Imagine, indulgente leitor!), e o que tornou esta assertiva tão digna de fé à minha credulidade foi aquele velho chavão: ela era “madura demais para a idade”. Jamais conhecera antes dela uma pessoa – uma criança! – que com a eloquência de uma mulher adulta conseguia discorrer sobre assuntos que ninguém de sua faixa etária saberia; desde então, apenas Anastasia, que conheci alguns anos depois, teria um conhecimento equiparável (ou até mesmo excedente) ao dela. Anastasia era apenas dois anos mais velha do que Nelly quando nos conhecemos, se não me engano – mas sua história será contada em alguma outra ocasião, com todas as glórias e a pompa que seu régio nome merece.
Retornando à minha adorada criança – Nelly carregava em si aquela mesma energia que, subsequentemente a ela, busquei em vão em meio a tantas outras mulheres: a “ophéliaque” loucura escandalosa e risonha, e a sonhadora obliviousness de Lady Fuchsia, mescladas a uma maturidade precoce que apenas o sofrimento poderia ensinar-lhe (“For only suffering can create such beauty!”) – energia esta que, à época, também eu tinha em grau saudável. Chamar aquela despretensiosa e deliciosa brincadeira de duas crianças de namoro seria uma ofensa àquilo que verdadeiramente éramos; como escrevi, “éramos irmãos de alma”, e amei-a como René amava a Amélie: em meio a infantis quimeras, passeando por uma fairy-land de devaneio.
Sobre o que causou a ruptura de nossas relações não gosto de aprofundar-me; tampouco pude detalhá-lo na “Viagem por São Paulo” tamanho desprazer tal memória traz. Só posso dizer que aquela pobre garota não foi feita para conhecer o Mal – mas algo (ou alguém) a impeliu a ele de corpo e alma. Perdeu ela sua inocência, e eu meu ideal.
Nelly não foi a primeira a quem amei: a infeliz megera à qual dediquei meu début duplamente infeliz veio antes dela. O que difere uma da outra é que, com Nelly, era capaz de vislumbrar um futuro – um futuro construído sobre areia, um impraticável (ainda que magnífico, modéstia à parte, graças a nossas imaginações inflamadas) castelo de vento no céu, mas ainda assim – um futuro. Futuro este que, ironicamente, se fosse-me permitido tê-lo em meu estado atual, acabaria por morrer de tédio.
Muitas mulheres depois dela surgiram, decerto, e as amei num sentido mais concreto (intellige, carnal) da expressão. Minha habilidade de vislumbrar um futuro ao lado delas, por mais viável que desta vez fosse, esgotou-se; foi a Nelly que dediquei meus mais lindos sonhos e jamais poderia replicá-los com sucessoras tão indignas. Selei minha sentença, no entanto, ao procurar incansavelmente as Musas, e estava inevitavelmente fadado a conhecer a “despondency and madness” iniciando meus labores no auge de minhas “youth and gladness” – encerrado cada vez mais em meu próprio trabalho, tudo o mais começou a perder seus encantos. Meu elemento passou a ser a esqualidez, e abracei-a a ponto de nos tornarmos um só; tantos outros bons poetas, melhores do que eu, morreram de fome…! Não mais tive medo da indigência, tampouco da morte – queria morrer como eles. A partir deste ponto, o ressentimento que tive por nunca poder ter sido um afetuoso marido a qualquer pessoa a quem amei tornou-se resignação, pois aquela que houvesse de desposar-me cometeria a mesma grande estultícia de Immalee ao apaixonar-se pelo danado Melmoth, entregando-se ao domínio do Mal – tanto é que incontáveis vezes castiguei a mim mesmo, seguindo um torto raciocínio, por ter sido eu a introduzir Nelly no caminho das trevas, ou no mínimo ter facilitado suas primeiras incursões.
A Poesia, em contrapartida, nunca deixou de parecer-me interessante, e quanto mais perdia, mais constatava que minha escrita evoluía – a meus olhos, pelo menos. Por alguns períodos escrevi mais; noutros, menos; produzi desde excelentes morceaux a abortos dos quais arrependi-me, e enxergava com prazer as perspectivas de viver uma vida afastada do bulício e das vaidades da sociedade, solteiro, rindo-me de tudo aquilo que outrora teria matado para conseguir. Por mais que o vituperasse com sarcasmos, porém, não deixava de enxergar meu passado com Nelly como a perda que impulsionou meu trabalho e o refúgio ao qual inevitavelmente me voltaria sempre que a dor que me impele se tornasse particularmente dura de suportar, e longe disto entristecer-me, fico exultante de pensar naquela garota, sobre ela escrever e recordar-me de tempos mais singelos pelos quais nutro tanta devoção a ponto de querer discorrer sobre eles sempre que possível. Igualmente, alegro-me muito vendo que ela própria, depois de suas perdas, também encontrou uma felicidade que, nem quando crianças, nem agora adultos, seria eu capaz de fornecer-lhe, e bem ou mal, cada um é feliz a seu modo, seguindo suas vocações, atualmente – pois se devo expirar escrevendo poesia, já sabia de suas consequências quando escolhi este caminho, e é tarde demais para que devolva meu dom.
Estoicamente entrego-me à pobreza, à loucura e à fome – mas saber que ainda hoje Nelly pode passar seus olhos por minhas garatujas e, quem sabe, sorrir ao pensar carinhosamente em mim, me é uma maior recompensa do que troféus, lauréis, dinheiro e outros bric-à-bracs que não valeriam meus esforços.
IV: SURSUM CORDA
Nada mais tenho a discorrer sobre o passado. Queira contemplar o futuro que desponta no horizonte em minha companhia, leitor amigo! As dores da perda dissiparam-se: “o pesadelo vivo não existe mais! O verdadeiro inferno ficou para trás”! Minha criança já não é mais uma criança, eu próprio já agarro-me às últimas fibras de minha juventude e, longe de erguer-se como um triste e opressivo memorial de um trágico passado, a imagem de Nelly tornou-se uma triunfante Nice nas galerias de minha mente; com uma trombeta aos lábios, espera a ocasião para soprá-la, anunciando o fim de minhas provações e a conclusão de minha obra.
Dentre os poucos sonhos que ainda sou permitido nutrir, um deles é o de nos reencontrarmos, e após tantas perdas e pesares não seria mais este o laço a nos unir, e sim um de fraternidade tal como fora há tanto, tanto tempo. Acima de tudo, não cometeria o mesmo erro de Orfeu de olhar para trás: podemos construir memórias talvez mais belas que as de nosso tempo de criança. Não posso deixar de pensar, porém, que talvez ela saberia responder a pergunta que fiz a tantas pessoas, sem que obtivesse resposta; o enigma que sintetiza a existência de meus trabalhos, cuja solução persigo cada vez mais freneticamente há doze anos:
“ONDE ESTÃO AS NEVES DE ANTANHO?”
De qualquer forma, sigo a guardá-las no peito “com o carinho e a devoção que merecem”, e sei que ela também as guarda, o que já é um grande portento daquilo que poderá vir.
(São Carlos, 15 de maio de 2022)