Daqui de dentro
Aqui, de onde é seguro observar as pessoas, eu decidi me trancar e jogar a chave fora, eu decidi ficar aqui, desviando das garrafas que atirei na água, bem no cantinho, torcendo para não ser notada, mas rezando para alguém me estender a mão e entender meus motivos, aqui, de onde a vista é mais limitada, eu vejo os carros na estrada, passando a uma velocidade sem fim, no passado, alguns até já estacionaram para mim, me perguntando se eu queria seguir com eles, mas o medo sempre me impediu de confiar, o tempo foi passando e eu ficando aqui, onde é mais confortável morar, ainda que solitário, eu criei meu próprio mundo, um mundo inteiro aqui, tão afastado e ao mesmo tempo tão perto, o suficiente para eu ter inveja dos sorrisos e da música, que soa tão tentadora do outro lado de mim, aqui, onde a tristeza é conselheira e a dor faz parte, é arte, é cultura, exposta sob a grande janela dos olhos, mas eu fecho as cortinas para impedir que alguém descubra o meu esconderijo, o meu lar, meu exílio, eu sei que não é para sempre, eu espero mesmo que não seja, mas pelo menos daqui eu posso aproveitar melhor meu tempo, caminhar através do vento e conversar com as estrelas, eu posso flutuar no pensamento e distorcer as lembranças feridas, aqui eu sou rainha e todos me amam sem que eu sequer me esforce, aqui dentro é frio, congelante na verdade, mas eu me acostumei e gostei, daqui de dentro eu sei que nada pode me machucar de novo, revisitar o passado é proibido por aqui e pensar no futuro assusta, aqui, os dias são longos e os monólogos são necessários, mas não se engane pensando que eu vim parar aqui porque eu quis, de certa forma é verdade, eu descobri esse lugar a muito tempo, meio sem querer, mas acabei decidindo ficar, me tornando mais um poema clichê, um livro meio sem graça, que se vendeu de graça e ninguém quis publicar.