Quando fingimos não ver

Esse pode não ter sido seu ato mais egoísta, mas foi o que desencadeou todos os outros. Sentada na cafeteria, tomando seu expresso favorito, conversava amenidades com a antiga colega do ensino médio e hoje uma de suas melhores amigas. Como essa amizade surgiu é até difícil de explicar, dado as poucas coisas existentes em comum entre as duas, Contudo, agora, alguns anos depois, ambas compartilhavam algo a mais.

Seu pensamento foi para a noite anterior, na qual dormiu agarrada à seu namorado, o calor dos corpos espantando o frio. Estavam nas primeiras semanas de relacionamento que mantinham em segredo, como se fossem adolescentes. O desejo ardente do novo amor, a sensação gostosa do escondido.

E, como toda história boba de adolescentes, um dos motivos do segredo era o fato de seu atual ser ex de uma de suas amigas mais próximas. Justamente a que ela estava conversando agora. Como o destino prega peças. Ela havia marcando o encontro com a garota justamente para falar sobre isso, já havia inclusive ensaiado no espelho como contaria e os argumentos que usaria diante qualquer reação que a menina tivesse.

Afinal, foi quase que inevitável, pensou consigo mesma. Um beijo trocado com o menino em uma festa da faculdade. E caiu de cabeça pois, se o beijo era bom, o sexo era como chegar ao paraiso. Nunca havia se sentindo tão amada e desejada e, para alguém carente que nunca recebeu amor suficiente de ninguém, aquele amante atencioso era tudo o que ela já sonhara em ter. Estava apaixona. Pelo ex da amiga, é verdade, sabia muito bem desde o início. Porém, a paixão foi inevitável. Inevitável. Repetia como mantra ao menor sinal de culpa. Inevitável.

Contudo, apesar de sua felicidade, tinha que contar para a amiga, era o certo a se fazer. Estava ciente do quão complicado havia sido o relacionamento dos dois, de como haviam saído machucados. No fundo, ainda suspeitava que restava um sentimento no coração da garota. Tudo isso acabou por ser motivo para não contar assim que aconteceu.

Mas essa era a hora.

Olhando firme nos olhos da amiga, disparou:

"olha, eu fiquei com o Felipe, não foi nada planejado e eu quero que você saiba que se eu pudesse evitar, eu teria evitado. Quero que saiba que entendo que o namoro de vocês foi difícil, mas gostaria que nossa amizade continuasse."

De todos os cenário que havia rodado em sua cabeça, nunca poderia ter imaginado o que aconteceu. A amiga se levantou e a deu um abraço carinhoso. Disse que estava tudo bem, que estava plena e feliz com seu novo namorado e que queria que ela fosse feliz também. "Você estar com o Felipe pouco importa, desde que ele te faça feliz. Eu já o superei."

Admirável e surpreendente. Todavia, ela conhecia a amiga muito bem, bem o suficiente para saber que aquele sorriso estava largo demais, que seu tom de voz estava muito afetado e que os olhos da menina pareciam um pouco inchados quando ela voltou do banheiro.

...

Após a troca de sorrisos e abraços, despediu-se da amiga e entrou dentro do Uber. No banco de trás do carro, mandou mensagem para o seu namorado, "falei com ela, amor"

dois bipes, a resposta dele: "o q ela disse?'

"q está tudo bem, n tem problema nenhum." "sério?" "ss, ela tá de boa, conto os detalhes mais tarde, bj", "ok, bj <3"

Ainda dentro do carro, pensou na reação falsa e ao mesmo tempo gentil da amiga. Teria ela feito o mesmo se a situação fosse contrária? Provavelmente não, sabia que lhe faltava tamanha maturidade. Talvez ela devesse se afastar um pouco, dar a outra algum espaço. Isso poderia ajudar ambas, poderia até fortificar a relação das duas, não? Pensaria melhor sobre isso depois. Tinha que se concentrar no seu namorado e no que iriam fazer para comemorar o primeiro mês de namoro que estava se aproximando.

O namoro durou cinco meses.

Ela nunca mais falou com a tal amiga.

Amanda Távora
Enviado por Amanda Távora em 23/01/2019
Código do texto: T6557757
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