Círculos
O estático em movimento. A agitação imóvel. Depois da invenção do relógio até o tempo volta sempre pro mesmo lugar. Então como é que a gente vai sair do lugar? Como um cachorro amarrado na árvore, como o ponteiro preso no seu eixo, a nossa área da atuação fica restrita ao comprimento da coleira. E o descampado está cheio de árvores, todas distando, uma da outra, pelo menos a soma dos comprimentos das coleiras amarradas a elas. O que existe, então, é uma infinidade de círculos quase tangentes. Mundos particulares que se enxergam, mas nunca se tocam.
No começo marcamos o pescoço e nos estrangulamos na tentativa de atingir o preso ao lado. Vivemos no limite, na circunferência dessa área que é nosso mundo. Chega um ponto, no entanto, que a coleira, de tão apertada, estrangula a alma. Nesse momento a apatia alcança sua vitória. Acontece, então, a epifania da resignação. Vemos, num aparente surto de sabedoria, que há uma área que preenche nosso mundo, que a coleira não precisa estar sempre retesada e que o estado normal de um pescoço não é sufocado. E passamos a não olhar mais para fora. Passamos a caminhar suavemente dentro do nosso maravilhoso mundo do conforto, longe da angústia do querer e não conseguir.
Liberdade. Livres da dor, da angústia, da impotência. Num ato de sublime bondade, sinalizamos para os outros presos a nossa descoberta e disseminamos nossa semente da libertação. Um mundo próprio, mas um mundo feliz. Nos maravilhamos com a árvore que nos prende, com nossa própria coleira, com o chão em que pisamos. E olhamos, olhamos e olhamos... E olhamos. O espetacular velho mundo novo que outrora descobrimos revela-se limitado. Percebemos que, diferentemente do horizonte que almejávamos, aqui o horizonte é uma árvore logo ali. Percebemos que aqui tudo é tangível, alcançável, tudo pode ser analisado e, portanto, revela seus defeitos.
Nesse momento olhamos para os lados. Olhamos para aquilo que havíamos esquecido. Olhamos para aquela linha que conhecíamos bem, ali onde a coleira alcança. Há grama ali. Há tempos ninguém pisa ali. Vemos outras árvores, cada uma diferente da outra e da nossa. Mas acima de tudo, vemos o horizonte. Longínquo, inatingível, utópico. Uma simples linha com o poder de trazer a inexorável certeza de que o que existe até ele, existe após ele. Reticências do mundo real. De nada serve, no entanto, se o que vemos não nos apraz, já que ele garante a continuidade do que quer que for, de ódio a amor.
E o que vemos são pessoas. Pessoas distintas. Pessoas que, diferentemente do que pensávamos, não estão agindo como a gente. Cada uma de um jeito. Uns dormem com um sorriso leve sob a sombra da sua árvore, outros chutam o chão num andar triste pela sua terra e outros ainda lutam ferozmente contra suas coleiras. O belo, porém, está no sutil. Em como, parcamente espalhados pelo descampado, vê-se dedos que se encostam. Pessoas deitadas perto o suficiente para poder sentir o calor do próximo, nem que seja só de leve. Pessoas que venceram juntas, cada uma de um lado, e colhem as glórias na pele uma da outra.
Glórias ou derrotas alheias, no entanto, não nos interessam. Interessa ver como os outros mundos não são iguais ao nosso. Perceber que o nosso destino não é o destino de todos, mas, ainda assim, que o destino dos outros pode vir a ser o nosso. Entender como dois destinos se encostaram quando os dedos se encostaram e sentir o rio de almas entre eles. O nosso destino, então, não é só a gente. O nosso destino são os outros também. O nosso destino é a grama nunca pisada depois do limite da nossa coleira e antes do limite da coleira do preso ao nosso lado.
Voltando ao início, como sempre se faz, percebemos que não há destino em nosso mundo. Não há objetivo que já esteja cumprido. Um ciclo é a constante realização daquilo que já foi constantemente realizado. Não há o que alcançar e almejar dentro dos limites da coleira, preso ao eixo do relógio. Resta olhar para os lados. Olhar para a grama alta, para os lugares que ninguém ainda alcançou, e escolher alguém para, num esforço conjunto, alcançar esse lugar. Essa escolha então, revela-se a chave para quebrar o ciclo. Ela só dá certo quando quem escolhemos também nos escolhe. Além de escolher, portanto, devemos estar prontos para sermos escolhidos.
Olhemos para os lados.