Trânsito
São altas horas da noite, eu, em meu automóvel, me dirijo para casa depois de mais um dia de trabalho, depois de mais um dia... de apenas mais um dia. No entorno, a cidade, a vida que pulsa com sons tão peculiares, tão perturbadores. Por detrás do alvoroço de luzes, corpos e estruturas, o silêncio de almas marcadas, a solidão massiva, esmerilhada nos corações de todos nós.
Existem sorrisos próximos a mim, enlatados, expostos pelo vidro entreaberto, a definitiva amostra do caos: sentenciando todos os espíritos cansados à um protagonismo totêmico, cenográfico, epistemológico e delirante.
Cartas abertas de socorro, são esses olhos perdidos na web, através da pequena janela que encanta e ilude. Um simples toque, e, talvez, exista mais vida no engano, que vida na vida. A indiferença à existência do outro é tão latente, mas tão profundamente tangível, que transgride a barreira da normatividade e dá tons de cânone religioso... É uma fé, a perda de fé.
Alguns desses sorrisos maquiados já estão endereçados para o fim, alguns de nós já não suporta a vida como se tornou, já não sabe lidar com a violação de seu “eu”, não sabe como se encaixar, não entende como não sofrer. Muitos de nós passou, desapercebidamente, por alguém que hoje se decidiu sobre como resolver a questão de estar a morrer em vida, alguém que determinou que silenciar as batidas de seu coração pode calar a dor de existir. Mas como poderíamos saber? Como poderíamos prever? Quem sabe? Quem pode mudar destinos ou salvar-nos do caos-em-nós?
Enquanto meus olhos observavam o apocalíptico cenário, velado em cena cotidiana, passaram, desavisados, pela imagem reveladora no retrovisor: eu, eu mesmo, o narrador-personagem, o de-fora, que está dentro, observando o mundo, do mundo.