Anseios
Cansei. Se não for de tudo, é de, pelo menos, grande parte do que vivo. Cansei, como ponto de partida, da apatia. Apatia essa que se alia ao ócio. Cansei de viver na sombra do grande espectro mórbido que me esmaga sob seu peso. Cansei de estar tão firmemente soldado ao chão que não olho para outro lado senão para cima. Cansei de viver a vida no meio da encruzilhada e ver os outros passarem. Passarem e baterem. Quero estraçalhar-me com qualquer pessoa cuja trilha venha a coincidir com a minha, seja lá quem for. Quero ver o semáforo ficar amarelo e acelerar ao invés de frear. Quero sentir o farol vermelho, que, pela proximidade já não pode ser mais visto, e acelerar mais ainda, sobrando-me nada a fazer a não ser torcer para que ninguém se colida comigo, mas tendo, bem no fundo, a esperança de que alguém venha a faze-lo. Quero lançar-me à sorte. Girar a roleta e lançar-me em seu meio, rodopiando numa trajetória caótica sujeito apenas à gravidade e ao atrito. Quero sair da inércia, seja ela estática ou dinâmica. Quero me mover com minhas pernas de um lado pro outro, sacolejando a alma moribunda que ainda me habita.
Cansei da rotina, de ciclos. Década, ano, estação, mês, semana, dia, manhã, noite, hora, minuto, segundo. Já não bastasse o tempo ser uma infinidade de círculos concêntricos que se orbitam, minha vida ainda é um imenso pêndulo rotatório. Cansei de círculos. Que se abra o sinal do infinito e trace no espaço um “daqui até lá” e não um “até lá e de volta”. Cansei de mesmos lugares. Cansei de trilha de feijões e do caminho de volta. Quero, além de não saber para onde vou, não saber de onde vim, mas saber onde estou. Aqui. Cansei do lá, do depois. Quero o aqui e o agora, tão bem definidos quanto meu corpo de carne e osso e tudo aquilo que o cerca e que interage com ele. Cansei das faixas de grama amassada. Caminhos ditados pelo costume e pela repetição e obedecidos tão irracionalmente como foram feitos. Cansei da objetividade, do menor caminho, da linha reta. Do extermínio do espaço em função do tempo. Quero andar em círculos em campo aberto, fazer o trajeto mais longo simplesmente pelo trajeto em si. Cansei de fins sem meios. Quero fins com meios e, acima de tudo, meios sem fins. Quero fazer por fazer, e não por ter feito.
Cansei de construir meu futuro, o que é o mesmo que construir meu passado. Cansei de projeções e de expectativas. Acima de tudo expectativas parentais. Se meu futuro não me compete, quanto mais a outros. Cansei do útero infinito, da forca umbilical. Cansei da gestação pós-natal que, se não for abortada, só parirá na morte. Cansei de ser caracol. Trocar a dinamicidade da vida pela segurança de carregar a casa nas costas. Cansei de sentir o aroma adocicado da segurança. Quero sorver o fel proveniente das podridões à beira do caminho. Cansei do toque do algodão. Quero sentir a aspereza, a rispidez. Quero escoriações. Quero a dor. Chega de auto-piedade, o que eu desejo é o masoquismo anímico. Enterrar a estaca no meu peito e me alimentar do meu próprio sangue.
Cansei, em síntese, do “isto”. Dessa situação atual, em quase todos os aspectos. Quero mudança. Mas não uma mudança superficial como preto pro branco, ou agudo para grave. Quero mais uma mudança total de sentido como de cor para som, de preto para agudo. Ainda assim isso é insuficiente. Quero muito mais. Quero outros cinco sentidos, ou nenhum. Cansei do horizonte longínquo e da morte à vista. Quero andar à beira do penhasco, sentido a vertigem de olhar para além do horizonte, saber que a morte vive lá no fundo, mas ter o alívio de não vê-la. Cansei da vida efêmera inscrita no tempo infinito. Quero, enfim, a vida infinita inscrita no breve agora.