Rua
quero chupar do rio as pedras menos preciosas pra depredar o cansaço incansável de minhas pálpebras moles
- elas movem-se sem meu consentimento.
vamos mesclar os cabelos engraçados com os cachos cintilantes?
surgirá uma tarrafa molhada de risos
Harmônicos risos como o som daquela flauta que a moça toca há anos sem compreende-lo.
quero andar pela minha rua e entender o motivo pelo qual a gata desespera-se, procurando em cada caixa de sapatos a cria que mia também desesperadamente.
quero pisar em cada telhado banhado de sol, onde ratos escondem-se da perigosa luminosidade, telhados molhados de sol e riso - que escapam pelas brechas das telhas, risos humanos provenientes de algo estupidamente digno de risos.
quero ver na rua o calor e a luz que as paredes escondem por existirem tão somente para esconder. a existência delas faz com que eu queira ver o que elas não mostram, assim como os olhos enigmáticos que me mostram os espelhos. a superfície mente o interior. se esconde por fora, mas não é fácil, nada fácil de se mostrar por dentro.
o asfalto é pelante, posto que descalço os pés e deixei no caminho os sapatos. deixei para o mendigo que habita a rua - e é mais sua do que ninguém. minha rua tem esquinas que fazem nós nos cachos e tem cipós vivos que enlaçam moças de saia curta. A louca da casa número 93 pinta as unhas na janela e habita os sonhos das crianças do Juarez.
passo e aceno. e vejo que a gata encontrou um cão de barriga gorda, roncando e rosnando, suponho que tenha comido a cria e a gata supõe o mesmo e ataca pelas costas o cão que a engole num bocejo.
vi, mas não contei nada a ninguém. a igrejinha pouco freqüentada abriga agora o padre que casou-se três vezes, duas mulheres e um homem - o coroinha da missa do galo de 86. ele me viu e eu sorri. de alguma casa sai um som de piano misturado com vidro estilhaçado e eu percebi que entardecia e também entardeci os passos e o ânimo e fui ficando mole e cai perto do bueiro e lá fiquei.
entendi que há vida até nos bueiros, posto que eles me contaram os segredos mais sigilosos da vida subterrânea a rua. lamentaram-se também pelo fato de federem pela causa alheia. sobretudo no verão.
me agarrei ao poste e escalei os fios e estive próxima a conversa telefônica de D. Guilhermina. desci como num esqui rápido e pensei que as coisas minhas que não consigo controlar, como o piscar e a respiração fossem em si as causas do meu descontrole.
pensei que a vida era como uma rua, como minha rua. limita-se na significância, não necessita de significado.
o relógio marcou seis da tarde e pude ouvir da igreja uma ave-maria desafinada de freiras infelizes por terem casado com um homem morto. essa é a hora que mais detesto no dia e corri para minha casa e me escondi no quanto com a esperança de afogar a cara no travesseiro e ver as seis horas passar num piscar de olhos, o que não aconteceu e eu tive que ceder lugar ao claro escuro do fim de tarde e me conformar com as luzes acesas. resolvi contar ao meu irmão sobre o episódio da gata e ele só me disse:
se as pessoas recolhem-se em quatro paredes a fim de fugir do perigo das planícies amplas da vida, o perigo irá transformar-se nas próprias paredes e não terão para onde fugir.
fiquei pensando.
caí no sono e sonhei que minha rua tinha um rio e eu chupava com um grande canudo todas as pedras não preciosas.