Anotações para mim mesma

A casa cheia de crianças e ela à frente do pc. Nada. A espera reluta, um cálice de vinho à espreita, um pé embaixo da mesa e outro pra fora, já a postos... E ela ali, inerte. Um filho chama à esquerda, outro chama à direita, e ela ali... um pouco de sono nos olhos, um pouco de sonho no olhar, e ela ali.

Preciso do bloco de notas urgente. E esse bloco de notas que não abre... as ideias fogem como pássaros com a tempestade à vista.

Um filho chama à esquerda, mamãe o almoço, mamãe... ela resmunga veja lá... na geladeira tem coisas... a geladeira é um mundo de coisas feitas de ontem, de anteontem, tem tantas coisas a geladeira, a geladeira poderia me tragar pra dentro dela, com seu universo à parte, com seu mundo de coisas lá dentro mas não há nada ali que me interesse...veja lá... ela ali embasbacada aguarda... o chamado que não vem... a conversa de todos os dias hoje ausente... ela sente a solidão se aproximar, a solidão já começando arder dentro do peito, um suspiro, a glote que se fecha na mão opressora da solidão a esmagar o pescoço, e a lágrima que corre do lado esquerdo do olho esquerdo.

A filha chama mamãe venha comer eu esquentei a comida, ela limpa o canto do olho com as costas da mão e responde num esgar... o corpo é só pele e osso e ela ainda aguarda

aquele que não vem, que não viria nunca mais...

nunca mais é um tempo muito grande, grande demais pra tanta sofrência... mas os segundos que passam evolam, o aroma do vinho evola, e tudo se esvai, o vinho seca na taça da espera...

então o movimento se une a mão e ao pensamento entorpecido, ela abre páginas e páginas à procura, e páginas e páginas se abrem e lá se perde ela aqui e ali... sofre um menos um tanto, distrai-se um tanto um menos, e afinal encontra a foto...

o cabelo caído na frente do rosto que tapa os olhos e esconde o olhar, o riso aberto de quem ontem a noite desfrutou foi é muito, um suor escorre no rosto de quem observa, ela pega a taça e tenta dar um gole naquele vinho que secou a tua espera, mas o vinho secou assim como a chama nos olhos que tu tinhas por mim, esses mesmos olhos que agora escondes por detrás dessa cortina dos cabelos que um dia se encaracolaram em meus dedos

foi tudo um sonho, pensei, eu jamais tomei aquela taça de vinho contigo, nem nunca enrolei meus dedos nos teus cabelos dourados que fazem ciúme ao sol... eu nunca deitei na tua cama nem nunca delineei teus traços com a língua que hoje te grita

a tua foto é um tapa na minha ilusão e caio,

caio em mim

e retorno cabisbaixa aos papéis que me impuseram

levanto

e vou fazer o café

e o café me acorda de mim.

O conto termina, não podia mesmo virar história

a tua a minha história de nós dois, que nunca existiu e no entanto

nunca teve nem terá fim.

Cacau Segobia
Enviado por Cacau Segobia em 03/06/2018
Código do texto: T6354512
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