Ronroninho
Eu já não tenho vontade de fazer nada. Digo, penso em fazer algo e já se me desvia a atenção e as costas se recostam e fico a admirar o nada. Estou hoje focada no sofrer, focada na perda. Não há nada que se possa sobrepor a isso a não ser este gato a lamber-se desesperado de pernas abertas em cima da minha cama. Fico a perscrutar-lhe os movimentos, a sua perna bailarina que se eleva acima da orelha, a sua língua áspera que vai e vem e a imaginar as bolas de pelo que se formam ali dentro da sua boca e depois viajam-lhe esôfago, estômago, intestinos a dentro. Tem esôfago o animal gato? Isto realmente não sei e a preguiça me impede de abrir o dicionário ou procurar uma resposta adequada na internet. Ei-lo que segue segmentando-se e lambendo-se por partes, aqui está ele a lamber agora as patas da frente.
Levava o meu pequeno grande gato amarelo ao veterinário, e depois do veterinário ao hospital onde lhe mandaram, seus rins falhos, o balanço do carro, ele me acalentava ou eu a ele? A minha esperança brilhava em um pensamento singular, se ele sobreviver nunca mais eu deixaria que ele dormisse do lado de fora. Meus olhos cansados de passar a noite junto a ele piscam e uma pequena lágrima escorrente me faz perceber que já eu, que não sou religiosa, estou a pedir a Deus que salve a vida do meu gato.
Enroladinho em dois cobertores ele está sedado mas acorda e me olha, de uma profunda escuridão pois já é noite. Sentada no banco de trás, só eu e ele e esse momento, os carros passam, o tempo passa e ele me olha, com esses olhinhos de âmbar reluzente, olhos que não perderam a cor nessa doença súbita que o acometeu. Lá de dentro de seus cobertores, aquecido por eles e por meu corpo ele me olha e se se pode dizer que os animais sorriem este sorri e se despede. Aperta seus olhinhos de adoração e me mira, como o ser fantástico que ele imagina que eu seja. Mas eu não sou fantástico, meu pequeno amigo, eu sou só o ser que vai chorar miseravelmente por muitos e muitos anos porque você se foi. Fantástico é você que encara a morte com paciência e quase deprendo que sua preocupação no momento é como vai ficar aquela que eu amo tanto.
Se isso existe eu não sei, não sei se foi minha imaginação ou a minha muita vontade de tornar quase humano um sentimento tão vago. Olhando pra mim a força do seu amor me diz não chore, eu vou mas vou feliz, receber a minha paga por ter sido tão bom teu companheiro.
Não sei se antes eu senti sentimento tão intenso vindo de ser tão pequeno.
Acordar de madrugada com teus olhinhos me olhando, dormir e perceber que tu te postaste a meu lado, guardando o meu sono. Nunca mais.
Vai em paz meu ronroninho. Meus braços não querem se desgarrar da coberta que foi, que é tua, meus olhos não querem te olhar pela última vez na tua cova mas eu te olho. Pra mim voltaste pra casa e agora dorme pra sempre em nosso quintal e em meus sonhos.
Pra onde vais meu ronroninho, além do escuro dessa cova, com esses teus olhinhos que sabem amar mais que os meus?