PÃO PINTADO

Venero trabalhos manuais. No bordado a frente e o avesso precisam estar perfeitos. Isso garante beleza ao trabalho. Leva tempo e é lento, ponto a ponto.

Dentro desses trabalhos manuais eu nunca consegui pintar. Já tentei e não fica bom. Vira uma bagunça. Aí desisto.

Nunca termino, sempre pego uma tela nova. Às vezes vejo algumas obras pelo mundo via youtube. A arte assim como a literatura humaniza.

Fico admirando os quadros e essa semana li uma frase que mexeu com meu interior.

"Não sacia a fome quem lambe pão pintado" ou seja quem só lambe o desenho do pão. Quem vive de aparências nunca será feliz.

E vejo isso toda vez que interajo com as pessoas. Tô de saco cheio.

Lanchava em uma lanchonete e olhando para os quadros do lugar vi um quadro enorme, era um quebra cabeças montado e emoldurado que foi colocado na parede.

Aquele quadro era eu.

Tudo rodou, me senti mal..tonta. Foi quando num " zás trás" veio uma lembrança:

O carrinho

O carrinho rangia..réc...réc...réc, cheio de roupas sujas, de fraldas de pano, lençóis e camisas.

O caminho de terra era marcado pelo andar de todas aquelas mulheres, pobres e.

Nem sei como descrever, jamais eu poderia sequer ofendê-las com minha descrição, pois se algum dia acreditei em heroínas lhe asseguro que foi por causa delas.

A pele enrugada pelo sol, as canelas tão finas como o graveto que eu colhia para o fogão à lenha, de saias a anáguas, chinelo de dedo e a barriga tão grande que eu não tenho como dizer para você se era um menino crescendo ali ou uma barriga d'água.

Todas levavam os filhos para o riacho...na beirinha ali agachadas batendo a roupa na pedra. O varal era verdinho, todas as fraldas secando estendidas no mato.

Aquelas fraldas quarando no sol, o sabão arenoso fazia furos nos dedos tanto quanto dava brilho nas panelas enegrecidas pelo carvão. Ao meu redor o cenário era rústico e agressivo.

As crianças sentadas compartilhavam o mesmo tapete sombreadas por uma bananeira. Todas ali eram mães que se tornavam babás dos seus e dos filhos das outras.

O sabão. Ah! Era um sabão em barra caseiro...o cheiro saía dos poros das lavadeiras, um nome em desuso claro, uma mulher com as unhas curtas porém incrivelmente limpas apontava para a filha mais velha (eu), incubida de colher as roupas já secas no capim.

Um momento divinamente oportuno, ali enquanto todas estavam batendo as roupas ouviu-se um grito! Alto e desesperador.

Uma das crianças estava descendo submersa na água rio abaixo, caíra na tentativa de pegar seu chinelinho que havia caído na rio.(minha irmã).

Todas as mulheres largaram suas roupas e unidas sem saberem nadar se jogaram na água.

Foi um desespero, todas de mãos dadas conseguiram tirar a menina.

A lição de solidariedade que carrego comigo. Nunca esquecerei essa cena.

Aos olhos de Deus, mas sem solidariedade, bondade e boa fé não saímos do lugar.

A mãe ficou parada, debaixo do sol quente, o tempo congelou, sob o meu olhar claro.

Eu olhava para mãe...parecia um pássaro inocente quando está voando e leva um tiro no ar.

Ela só balançava os braços, completamentamente molhada e suada do esforço braçal.

Talvez ela achasse que a filha já tivesse morrido.

Quem sabe o que se passa na cabeça de uma pessoa numa hora dessas. Ou no coração.

No meu eu posso dizer.

Senti medo, muito medo. Para morrer basta um estalo. É como o apagar e ascender de uma luz. Não somos nada, nunca seremos.

A garota foi salva..e após 20 anos muita coisa mudou, solidariedade nunca mais vi.Tem tanto tempo...são momentos assim que carrego dentro de mim.Já tem um tempo que ando envergada, inclinada para frente, às vezes para o lado. Ouvi coisas, vi cenas que eu importei para o coração e não sei o que fazer com elas. Não sei explicar o porquê de tanta sensibilidade. Queria estar dentro da bolha e não fora dela.

O passado pesa.

Cada peça do quebra cabeça impede de elaborar novas obras...de tecer uma nova toalha...ponto a ponto.

Mas por mais que a experiência me transforme, sinto falta de ver verdade nas coisas, de encontrar alguém de luto e ver no seu rosto a dor da perda, de chegar perto de um bebê e sentir o cheiro do recém nascido, de receber um album de fotografia com plástico colante entre os dedos, sentar na mesa e sorrir sem ter uma selfie no meio, um celular no meio da conversa, das pessoas conversarem se olhando nos olhos...mesmo me humanizando e me preenchendo sinto falta do cheiro do sabão...cansei do pão pintado.

Hora de mudar ou parar de pegar tela nova.

Como diz o pequeno príncipe " o essencial é invisível aos olhos".

Priscila Ferrer
Enviado por Priscila Ferrer em 31/05/2018
Código do texto: T6351220
Classificação de conteúdo: seguro