O ÚLTIMO BANCO...?
CAPÍTULO 2 - THE CRAB'S SONG(FAITH NO MORE)
- É você. - Ela disse sem olhar para mim.
Eu achei que fosse algum tipo estranho de brincadeira que fosse terminar em boas risadas, então resolvi não alimentar tal brincadeira e com a expressão séria voltei a perguntar demonstrando real interesse em ajudá-la, o que era a minha intenção desde que a conversa fluiu para aquele lado mais íntimo uns trinta minutos antes.
- Tô falando sério, quem é? – Perguntei com a voz mais séria.
- É você, já falei. – Ela repetiu.
Estávamos sentados no banco de concreto daqueles de praça que ficava na parte mais alta do condomínio de prédios onde ela vivia com a família. De onde estávamos podíamos ver as janelas de seu apartamento no último prédio. O mais próximo de nós. Tínhamos como horizonte os carros de duas pistas que, ia a mais próxima, da esquerda para a direita e a mais distante fazia o contrário. De pé ao nosso lado estava um amigo. Rodrigo. Mais alto do que eu. Aliás, quase todos que conhecia eram mais altos do que eu. Menos ela. A menor de todas. Ele comia algo num saco plástico. Pipocas ou amendoins talvez. Rodrigo ria após ouvir o que ela disse. Entre uma mastigada e outra ele ria. Estava claro. O sol, porém se escondia em algum lugar. Não entre as nuvens, disso eu sabia. Não havia nuvens.
- Se não falar, eu vou embora, já falei. Poxa, eu só queria te ajudar. – Ela, de pernas cruzadas como uma indiazinha sobre o banco rabiscava o concreto com um graveto, A nossa frente algumas árvores a muito plantadas num barranco que ia de encontro ao muro que nos separava dos carros que iam e vinham na avenida.
- Fala sério agora. – Pedi.
- Eu to falando sério. – Ela insistiu.
- Não está não. Quem é? – falei mais sério.
- Se não quiser acreditar, tudo bem. – Ela disse com desânimo.
Eu olhei para o Rodrigo e ele não parecia ter combinado brincadeira alguma com ela.
- É sério? – perguntei querendo rir.
- É. – ela não me olhava nos olhos, mas respondeu com franqueza. Mantinha a concentração no graveto que finalmente se quebrou.
O silêncio dos carros passando foi tudo o que pudemos ouvir durante algum tempo. Eu me senti estranho. Não pensava em absolutamente nada durante aquele tempo de silêncio. Foi como se pudessem ouvir meus pensamentos durante o silêncio. Tudo o que eu pensava se resumia ao som dos carros em velocidade moderadamente rápida. E eles puderam ouvir meus pensamentos por um instante.
- Desculpa, esquece isso, eu não devia ter falado. – ela disse ainda sentada de modo infantil virada para mim num canto do banco enquanto eu no outro canto e sentado de maneira “normal”, eu olhava para os carros imaginando o quanto seria linda a vista dali de noite, com as luzes da avenida, dos carros e do próprio condomínio.
Observei os pássaros no chão de barro ao redor de uma árvore á procura de insetos e sementes. O que eu devia dizer? Sim? Não? Quais eram as palavras certas para aquele momento? O que ela realmente queria? Eu já não queria aquele tipo de aproximação. Já havia tentado, mas sem sucesso algum e com certa decepção. Não valia a pena. O que ela queria? O que eu queria? Sabia dos riscos, ainda me lembrava do que tinha acontecido da última vez. Ainda sentia. E ela sabia. Os dois ali sabiam. Na noite anterior ambos apareceram de surpresa em casa. Eu que tinha acabado de tomar banho me preparava para dormir, porém aceitei o convite para ir á uma praça ali perto onde todos nós costumávamos nos encontrar para dizer disparates e falar sobre pseudo-arte. Naquele horário provavelmente estaria vazia. E estava. Falamos sobre tudo ou quase. Após algumas horas, ela disse que precisava ir. Não podia fica na rua naquele horário - quase uma hora da manhã – e como estávamos nos divertindo de certa forma, aceitamos o convite para ir ao seu condomínio e continuar a conversa. Fomos para trás dos prédios onde algumas árvores enormes nos escondiam. Contamos ali segredos que mais ninguém, além de talvez algumas páginas de caderno tinham conhecimento. Problemas e situações parecidos. Decepções comuns. Ali contei sobre alguém. Alguém de quem sentia falta. Mesmo estando junto dela por um mês apenas. Cristiane. Eu a vi pela primeira vez num dos bancos de concreto da mesma praça onde há algumas horas estavam Rodrigo, ela e eu. Mesmo após um fim estranho, nos vimos diariamente por mais oito meses. Mesma sala de aula. Isso já fazia dois anos. As memórias delas continuavam ali. Perseguiam-me onde quer que eu fosse. Talvez eu as perseguisse também.
- Não tenho Cristiane – diziam todos os cobradores nos ônibus em que entrava.
- Como? – eu perguntava confuso.
- Troco. Não tenho troco.
Onde quer que eu fosse.
- Nós temos um livro sobre a Cristiane também, não quer dar uma olhada? – a vendedora me ofereceu um livro ao me perceber segurando um sobre o Budismo.
- Como? – minha confusão mental novamente se fez presente.
- Cristianismo. Temos um livro novo que o senhor vai gostar.
Nunca mais voltei naquela loja.
Como ela pôde presumir que eu fosse religioso? Eu apenas segurei o livro que despencou da prateleira após uma garota passar correndo e esbarrar com uma enorme mochila branca com uns gatos desenhada. Num reflexo ela olhou para trás e após constatar que nada aconteceu e que apenas um estranho a olhava segurando um livro, ela sumiu na multidão tão rápido quanto a minha vontade de sair daquela loja de livros.
Era difícil não pensar em tudo aquilo. Os cabelos encaracolados e castanhos que variavam do escuro para o claro dependendo da luz. Olhos igualmente castanhos. Os lábios facilmente competiriam com Lana Turner num sorriso conquistador.
Contei tudo sobre Cristiane aos dois que ouviam atentamente e revezavam os comentários intercalados com suas experiências igualmente trágicas. Falei do quanto eu gostaria de ter alguém. Apenas um alguém. Para o resto da vida, um alguém. No quanto me era importante ser querido por alguém.
Ouvimos Rodrigo e eu com muita atenção ela falar sobre o que a deixava triste e solitária algumas vezes. Em certo ponto algumas lágrimas rolaram sobre as bochechas e ela naquele momento era a única pessoa que eu quis abraçar com vontade. Com real e único interesse de fazer toda aquela dor e cada lágrima já desfeitas pelas mãos e pelo solo, sumirem para sempre. Não consegui. Não queria ter aquele sentimento em mim mais uma vez. Afaguei-lhe os cabelos por um instante até que Rodrigo a abraçou contra o peito. Olhei os dois e pensei em como fariam um casal bonito. Ambos pensavam que a solução para boa parte dos problemas seria ter alguém para dividir os sentimentos, enquanto eu que sentia falta de alguém específico, não queria ninguém mais. A madrugada já se estendia quando o telefone dela tocou. A mãe pediu que subisse logo. Senti que não podia deixá-la ir com aquelas lágrimas. Avistei ali próximo as árvores um pedaço de madeira revestida com plástico. Logo percebi ser um cabo quebrado de vassoura. Quem sabe um rodo. O plástico tinha a mesma cor da coloração que ela tingia os cabelos. Sua cor favorita. Não sei como ou porque, achei que aquilo a faria rir. Não contei com o risco de ela me bater com aquilo na cabeça. Certas coisas definitivamente não têm explicação. Deu certo. Ela sorriu e as lágrimas evaporaram no mesmo segundo. Ela olhava para o pedaço de madeira sorrindo e me olhava. Voltava a olhar para a madeira colorida como se tivesse ganhado uma casa na Alemanha ou um carro. Muitas pessoas só teriam uma reação parecida se realmente tivessem ganhado algo assim. Mas ela não. Sorria por ter ganhado um pedaço de madeira que provavelmente fora quebrado na cabeça de alguém.
Fomos embora Rodrigo e eu. Ela realmente levou o cabo quebrado. Fui contente por achar que tinha conquistado uma grande amizade e algumas horas depois ela me faz aquela confissão. Disse em palavras certas que não estava apaixonada ou nada do tipo. Disse uma palavra que nunca tinha ouvido ninguém dizer fora do contexto dos contos de fada. Estava encantada por alguém. Tentei adivinhar já que ela insistia em não dizer quem era ele. Ou ela.
Coloquei primeiro os nomes mais óbvios. O pessoal do nosso grupo de amigos. Depois pensei e disse nomes mais absurdos. Não eram. Pensei então ser alguém que ela achava que eu conhecia. Cheguei a dizer o nome de uma amiga dela que fazia parte do grupo. Não era. Pensei em todos, absolutamente todos os nomes para finalmente ela dizer que era eu. Eu. EU.
Ainda nos bancos no alto do condomínio percebemos sua expressão se fechar após ela olhar sobre os ombros.
- O que foi? – perguntei.
- Vamos descer para os bancos lá de baixo? – Ela pediu.
- Vamos. Mas por quê? – insisti.
- Minha mãe está olhando para nós da janela.
Olhei e entre tantas e sem lembrar qual era o andar que ela tinha dito mais cedo, não vi ninguém. Descemos calados para uma das três mesas ao lado de uma árvore.
- Olha, você finge que não ouviu, ta? Esquece isso, eu nem devia ter falado. Eu sei que tem o lance da Cris... – Ela lamentou.
Parei de ouvir e me concentrei na lagartixa que cercava uma pequena barata no chão atrás dela. Propus um acordo e duelo comigo mesmo.
Se aquela lagartixa abocanhasse a barata - o que era bem provável – eu diria “sim” ao pedido feito lá em cima. Arriscaria mais uma vez. Se a barata conseguisse a sua liberdade o “não’ sairia tão rápido quanto às batidas de asas do beija-flor que rondava o alto da árvore. A lagartixa deu um passo à frente. As antenas da barata sentiram o rival. Ali, três homens em conflito. O bom, o mau e o feio. Quem era eu afinal? A barata era o bom. A lagartixa o mau. E o feio? O beija-flor? Certo que não. Era realmente espantosa a beleza do pássaro de asas velozes. Eu era o feio. Certo que sim. A barata correu, mas logo foi alcançada. O cerco se fechou novamente. Rodrigo sentado á mesa também, ouvia música com os fones. O rabo da lagartixa se mexia a cada tentativa de passo. Devia estar querendo muito aquela barata que por sua vez queria fugir daquele tipo de situação. Não estavam a sós naquilo. O beija-flor então tocou numa flor que sem muita pressa deslizou no ar até cair entre a lagartixa e a barata que, num segundo, sumiu numa fresta do cimento. A lagartixa desolada também se foi.
Eu e ela nos olhamos e cumpro o trato.
-Sim! – Eu disse convicto, olhando nos olhos dela, Sarah, e tentando não sorrir o tanto que eu queria.
No dia seguinte a esperei chegar da aula e reparei um familiar desenho de gatos estampado em sua mochila. A mesma mochila. Ela tinha nos cabelos as mesmas tranças da garota que meses antes vi na loja de livros, o mesmo olhar e mesma pressa, mas desta vez a pressa não a fez sumir na multidão.
Não terminamos nada bem alguns anos depois, mas as coisas boas e ruins que aconteceram até lá foram de grande aprendizado e valeu à pena cada sorriso que vi em seu rosto. A última vez que a vi foi exatamente nos mesmos bancos onde tudo começou. Só queria ser capaz de não ter colocado tantas lágrimas naqueles olhos.
Hoje me sento num banco qualquer ao som de Autoramas e às vezes me pergunto se aquilo poderia acontecer mais uma última vez. Não. Não quero. Não vou mais me entregar ao sentimento tolo que todos caem sem ao menos...
- Desculpe, mas tem alguma livraria por aqui?
Perguntou uma jovem de cabelos encaracolados e que vestia uma camiseta dos Autoramas.
- Eu estava indo para lá, se quiser te acompanho. – Meu sorriso se abre e o dela também. Quem sabe na próxima eu evite este sentimento.
- Quer chocolate?
Fim.
Início.