Desilusão, minha Donzela
Lá estava eu, sentado em minha desconfortável cadeira amarela, a olhar para a janela aberta, porém gradeada. A rua, nesse dia parecia próxima, as pessoas passavam um tanto distraídas por minha limitada visão quadriculada, assim como meu próprio olhar não se prendia a nenhuma delas e logo procurava outra e outra, que surgiam a todo momento. Tudo parecia em seu lugar: a luz do dia, não ofuscava, nem nos abandonava na penumbra; os seres andantes, nem rápidos, nem apressados; a tarde, nem antecipada, nem adiantada; meus pensamentos, nem opressores, nem reconfortantes. Talvez até pudesse chamar aquela estranha sintonia de “equilíbrio”.
Um estranho pressentimento me abate. Poderia até dizer que “ouvi” “alguém” entrar pela porta, para assim melhor ser entendido. Mas não Foi bem isso. Eu sabia quem era e que ela nunca saiu ou entrou; só sempre esteve lá ou não. Eu não precisava olhar para trás. A sua presença é inconfundível. Só por me distrair com sua chegada o mundo lá fora já parecia mais sombrio, mais cinzento, mais óbvio e inerte. Quando, finalmente, depois de um longo suspiro, olho para o lado, lá estava ela, minha estranha companheira, a Desilusão. Sentada em minha cama, ela, aquela mulher de corpo simples, com roupas que qualquer um tem, com gestos contidos e uma expressão serena, quase triste. Seu olhar nunca está em nós; sempre no horizonte, como imerso num eterno devaneio.
Ah, Desilusão, como me incomoda a sua presença. Como sinto vontade de enxotá-la de meu quarto, de exigir que me devolva o brilho do Sol, que é incompatível com sua estadia e se recolhe quando chega, de pedir que não tape minha visão do mundo e das coisas com suas mãos tão largas. Mas esta moça, apenas com seu silêncio, nos implanta algo tão simples, mas que nos desarma de continuar qualquer das coisas que tenhamos iniciado: o conformismo ou o comodismo. Tudo que à nossa frente e ao nosso redor era certo e firme, logo que tal Donzela coloca suas mãos em nossos ombros, torna-se duvidoso e distante, quase inalcançável. Todo esforço que antes diríamos ser válido, parece-nos agora inútil e tolo; a esperança da vitória e da conquista desaparece tão rápido que temos quase certeza de nunca ter existido. Abandonamos, simplesmente, toda a vontade de prosseguir com nossos desejos, nossas ideias, nossos pensamentos; tudo isso, quando tocado pelos dedos lentos Dela, é consumido pela Constância, que os macula e os torna imutáveis, impede seu crescimento e transformação. E, assim, nos vemos conformados.
Por isso não consigo manda-la embora. No entanto, tem outro motivo, mais forte até, quem sabe. Ela sempre esteve comigo, por muitos e muitos anos. De todos os “amigos indesejáveis” da mente, que por vezes chamam de Medos ou Traumas, ela foi a única que nunca fingiu me deixar. Sempre esteve lá, ora bem próxima de meu rosto, ora afastada, sem que eu pudesse ver seu semblante. Nunca tentou me deixar, por mais que a negasse ou ignorasse. Porém, por mais que não goste dela, eu devo muito, se não a maior parte de mim a ela. Quando me embrenhava por caminhos que aparentavam ser melhores, mas que escondem sua real dificuldade, ela estava lá, me puxando, fazendo-me olhar para o que eu não queria ver, mostrando-me meus equívocos terríveis. Só que estes eram, várias vezes, inacreditáveis e assustadoramente dolorosos para mim. Tudo que parecia certo, todo caminho que então percorri, via “transformado” em algo terrível, horrível; o desespero de enxergar a Verdade, de entender que via o que queria e não o que realmente é, isso era, e ainda é, uma sensação insuportável, que me enche de cólera. Mesmo por me mostrar isso com as melhores intenções, o alvo de minha fúria ainda é, em todas as vezes, minha Amiga, a Desilusão, pois quando o acesso de raiva nos toma acabamos culpando, de forma bem infantil, quem nos ajudou a voltar para o rumo certo de nossos passos. Mas como eu gostaria que ela fosse mais sutil ao me ensinar que o mundo não é bonito como eu vejo...
Talvez eu não goste mesmo dela e seja ela que me persegue. Talvez goste demais e tal amor me faz sofrer, por não tê-la mais do que quero. Talvez eu só não saiba viver sem ela, por ter ficado esse tempo todo com seu apoio. Talvez eu só não consiga deixá-la, pela consideração por tudo que ela me ensinou. Talvez eu não queira deixá-la e tenha escolhido com minha própria razão andar com ela, pela prudência. Talvez eu só seja grato pelo que ela me ensinou, como uma mãe que não tem mais nada a me ensinar, mas não consigo abandoná-la. Porém, a bem da verdade, ela continua aqui do meu lado, sem dizer nada, sem sequer me olhar, embora eu já saiba tudo que ela tem para me falar. Pois ela vive em mim; o que ela diz eu já pensei várias vezes, só preciso do momento certo para acreditar. E, quando aceito isso, quando o momento fatídico de tirar as mãos de meus olhos cegos chega, é nesse instante então que, melancólico, tomo consciência: estou desiludido, e o mundo é triste, como a minha alma.