Porque eu nasci mulher

Porque eu nasci mulher – dando sentido ao que os mais “novos especialistas” em Simone de Beauvoir defendem... Ou não.

Devia ter uns seis ou sete anos quando ouvi uma conversa entre as mulheres mais velhas da casa, eram mães de família, incluindo a minha própria e expunham suas preocupações com a violência sexual no mundo. Crente de sua lucidez e eivada das mais puras boas intenções uma tia disse à minha mãe: “Essa menina tem corpinho de mocinha, tome cuidado com ela, não a deixe sozinha no portão ou não coloque roupas que insinuem suas formas, tem muito homem safado por aí”. Lá se foram meus dias de banhos de mangueira de calcinha no quintal, lá se foi minha sessão vespertina de cadeirinha no portão no verão do Rio de Janeiro, só ia quando mamãe podia estar comigo e ela preferia a novela, era certo que as mulheres preferissem sempre as novelas. Cresci e acredito que salvo algumas raras exceções, todas nós crescemos com essas influências. Ao chegar na adolescência, tive aquela fase hardcore juvenil e só queria vestir calça surrada, tênis e andar com os cabelos desgrenhados, nada feminina, não estava na vibe de “mocinha”, foi então surpreendeu-me ouvir aquela mesma tia, já mais velha e não mais me parecendo tão lúcida, dizer: “Que garota sem vaidade, como vai chamar atenção dos rapazes se vestindo desse jeito, feito um moleque... como vai arranjar um namorado?”

Os incentivos que recebi porque nasci mulher foram os que me levariam a desenvolver capacidades que agradassem aos homens, pelo menos a um certo tipo de homem padronizado e mantenedor da cultura onde os nossos papéis enquanto gênero estão predeterminados e curiosamente eu recebi estes incentivos sobretudo, de outras mulheres. Eu fracassei no desenvolvimento dessas capacidades: O que eu me arrisco a cozinhar, às vezes, nem eu mesma consigo comer, não sei passar roupas que exijam técnica mais elaborada, leio o visor da máquina de lavar toda vez que tenho que usá-la e maternidade para mim tem uma essência bem diversa desta sacralização que o patriarcado propagou. Não fui uma boa menina, não fui uma mocinha adequada e talvez para muitos eu seja uma péssima mulher.

Sobre sexo, tudo que eu ouvia na tenra idade era para não dar, para guardar meu hímen como se ele fosse a única parte realmente preciosa do meu corpo. Ninguém me saudou quando eu resolvi me livrar dele, aliás eu tive que fazer isso muito secretamente e só porque nasci mulher, revelar com orgulho qualquer de minhas experiências sexuais não era uma opção. Aos treze ou catorze quando comecei a esboçar interesse pelo sexo, para os homens e mulheres que me cercavam, eu era um hímen ambulante, um potencial depósito de fluidos nunca utilizado...

Porque nasci mulher, eu provavelmente nasci sabendo que não deveria me sentar de pernas abertas, que não deveria falar com estranhos na rua, que não deveria ceder às investidas dos rapazes e nem reagir agressivamente quando estas eram expressas de forma ofensiva ou abusiva, o papel da “mulher íntegra” é abaixar a cabeça e não “dar confiança”. Certamente eu devo ter nascido sabendo que estar sozinha na rua ou na balada vestida de forma provocante ou não, é sinônimo de “querer ser abusada” e se eu me arriscasse e algo ruim acontecesse, boa parcela da culpa por isso seria minha.

Hoje, arrisco externar minha sexualidade e consegui construir uma personalidade que me permite gozar de certa saúde emocional e sexual. Mas isso não foi e ainda não é fácil, simplesmente porque eu nasci mulher. Encontrei um mundo preparado para me tolher, para me forçar a caber nos moldes, para me reprimir. Escutava as histórias que demonizavam os desejos dos homens e logo em seguida era sutilmente incentivada a despertar estes mesmos desejos. Não me foi facultado falar ou refletir sobre os meus próprios desejos, eles eram anulados e qualquer forma de expressá-los era rotulada como vulgaridade e devidamente condenada.

Então eu, e acredito que muitas mulheres do meu tempo, abdicamos de ser aquilo que nos fizeram crer que nascemos para ser. Hoje sou humana acima do meu gênero e me reinventei como MULHER, é mais fácil para seguir superando obstáculos. E porque sou essa MULHER, diferente da que nasci é que aprendi a me impor, a delimitar meu espaço, a fazer valer meus desejos. Eu não desisti da minha essência e de vivê-la em toda sua plenitude. Mas realmente eu não me encaixo no personagem que o mundo criou para mim a não ser que isso me interesse muito. Eu vou seguir me transformando, me reinventando... Simplesmente porque nasci humana e hoje posso dizer que sou a MULHER que eu quero ser, que nasci para ser.

Renata Vasconcelos - Em 26/10/2014, editado em 28?10/2015

Renata Vasconcelos
Enviado por Renata Vasconcelos em 27/12/2017
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