O amor cínico

Viver com pessoas, por vezes, é uma atividade perigosa e o perigo nunca é explícito. É bastante impressionante que, apesar de todas as possibilidades do cérebro e da linguagem, grande parte dos esforços são destinados à definição de culpa.

A culpa é o recurso humano mais abundante que já se teve notícia, talvez a culpa é que tenha monetizado tudo em primeiro lugar, precisamos ao menos trabalhar com a hipótese de que o dinheiro seja apena, e tão somente, o Estado de um gangrena mais antiga, embolorada. Pensar é ter culpa na mesmíssima medida que deixar de pensar também gera culpa, não existe escapatória.

Eu acordo, vejo as mensagens que não respondi e isso é tido popularmente como uma atitude relapsa. Eu vendo meu esforço, para poder me consolar diante de tanta culpa, para poder comprar uma coisa ou outra e poder dizer: sim, veja, a minha vida e minhas dores estão alugadas para outra pessoa, que também me aluga para fugir de sua culpa existencial, mas pelo menos meu relógio me notifica de que tenho distrações concretas e profissionais, me impede de pensar sobre isso agora.

Aí, algumas vezes encontramos alguém. Uns alguéns são simplesmente escapes sensoriais das nossas próprias sensações. Outros alguéns trazem em si, por querermos ver ali, uma espécie de redenção. Uma espécie de consolo: veja, sim, a existência tem esse monte de coisas ruins, mas ao menos você pode dizer que tem uma espécie de Drew Barrymore ao seu lado (e espero que, ao menos, sem todos aqueles problemas com drogas). Você pode levar alguém para comer um taco, ou qualquer outra coisa gourmet que você tenha visto naquelas chamadas descoladinhas da Catraca-livre.

Enfim, grande parte dos nossos afazeres diários podem ser resumidos em “como driblar minha angustia e ganhar dinheiro para continuar não pensando nela, ou alguma paixão que posso inventar.” Nessas paixões, que podemos inventar, o platonismo é tanto que as pessoas começam a montar uma espécie de lista de supermercado para consumir o humano perfeito, uma receita de bolo da existência. É uma vulgarização completa do sentimento de caos da vida.

Mas a grande verdade é que estamos continuamente sendo afetados, o que as pessoas nos dizem ou nos fazem pode nos dirigir à um sentido ou outro, todo mundo busca direcionar desejos. Todo mundo busca afetar o próximo, talvez como confissão implícita da própria miséria.

No fundo, buscamos sempre confusões para nos distrair da nossa angústia particular, quando sabemos muito bem o quanto isso é a grande urgência da existência. A questão capital entre ter uma vida de potência ou uma vida acovardada. Quanto mais se deseja e se quer, e se movimenta nessa busca, mais dor virá disso. É uma sabedoria meio antiga.

E em um mundo como este, de fato pode soar como afronta, como perigo, a sina de um Narciso. Amar-se violentamente, ao ponto de que a própria existência soberana, simplesmente por estar ali, existindo crie um contraste tão grande ante toda a conveniência da tristeza e da condescendência para com a própria insatisfação da solidão, que seja simplesmente ofensivo ser plenamente livre: um egoísta nato.

São nesses momentos que existe um choque triunfal para acontecer, quando dois rebeldes egoístas se encontram e perdem seu senso de individualidade meio que sem querer, meio que por não ter conhecido aquele sentido de amor ainda. Esse certo tipo de alguém tem um charme que só é acessível para você e o seu para ele, uma linguagem muito própria.

Eu já disse uma vez, que todo grande cínico foi, em algum dia, em algum sentido, um grande romântico. E dizer isso pode passar a ideia de que não exista amor, não exista amor possível, terreno, de gente e não de anjo. Sujo, encardido e com a carne exposta, com as feridas mal fechadas.

Existe, mas creio que para isso é preciso, antes, ensimesmar-se: distrair-se tanto com a própria força da existência soberana e solitária, ao ponto de convencer-se que em si é um universo. A partir daí, você lança um desafio ao próprio universo: pelo simples fato de ter atingido algo de divino; é como se o Caos reconhecesse em você, um tipo de existência que vale a pena combater, um oponente de valor. Esse tipo de coisa que espartanos ou samurais acreditavam. Para amar, antes, seria preciso ter em si o abismo e mais do que isso: estar estupidamente bem com isso. O amor, a morte, tudo aquilo que foge da nossa capacidade de falsificação racional, tudo isso, esses fenômenos, sempre nos olham de cima.

Sempre são estranhos elegantes no meio de uma multidão, alguém que você pensa ter visto, alguém que depois você sabe conhecer, mas não conhece todos os detalhes e nas raras oportunidades ele mostra, talvez, aquela olheira, outras vezes, uma certa assimetria nos olhos. A questão é que é um Estado de Soberania onde não se pode vencer, mas sempre que ser perde e se reergue e, finalmente, ensimesma-se novamente ele volta, pois apesar de ser insuperável esse estranho entende que ainda é possível te superar. Que ainda é possível brincar com sua tragédia pessoal e que se você possuir algum senso de dignidade, que ainda é possível tornar-se mais robusto, resiliente, voraz e que essa constituição de um tipo durão, demandará que o amor seja durão.

É isso, mais ou menos, o que tenho entendido por amor cínico. Não como uma forma de consolar-se ante a fatalidade, tão pouco para se distrair dela. Mas simplesmente por ser possível, em determinados estados de espírito, desafiar ela.

Deadeye Poem
Enviado por Deadeye Poem em 17/12/2017
Código do texto: T6201601
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