Ela

Ela era apenas uma menina qualquer brincando de amarelinha, riscando o chão da calçada de casa com uma pedrinha, quadradinho por quadradinho, pulando até de uma ponta a outra e voltando nas pontas dos pés, soltando bolhas de sabão no ar.

As nuvens de algodão tinham forma de coração, nelas cabiam seus sonhos, bem dentro delas havia um colchão onde dormiam as estrelas enquanto era dia porque de noite elas eram o seu teto. Deitada de barriga para cima no gramado observava os pássaros que quase tocavam o infinito de tão alto que voavam.

Deus não lhe dera asas, mas mesmo assim ela queria voar...

Ela era tão menina ainda quando conheceu o amargor da inadequação. Aquele sorriso de quem queria tanto ir para a escola se desvaneceu porque dentro daquele pátio a inocência foi estraçalhada até não restar nada além de cicatrizes. Do balanço era empurrada, das brincadeiras vetada, pela professora maltratada. Quando podia sentir aquele friozinho tão gostoso na barriga queria pedir ao tempo que se passasse mais devagar porque minutos como aqueles em que nada podia fazê-la chorar eram breves e raros.

A contagem regressiva por um dia incerto no calendário teve início ainda aos seis. Para as férias do meio do ano, para o aniversário sem balões coloridos, para o verão sem mar. Ao pé da janela. Manhãs, tardes e noites. Testemunha presente da poesia, a lua escondida por trás das janelas brancas de venezianas. O portal para o paraíso dos sonhos perdidos.

Antes fosse à lancheira cor-de-rosa o grande empecilho. Ela queria caber naquele quarteto bobo composto por garotinhas superficiais que nunca fariam por merecer sua lealdade, mas a rejeição deixou um buraquinho em seu coração, não tão pequenino que pudesse ser ignorado e nem tão grande que lhe surrupiasse a esperança.

Olhos grandes, escuros e curiosos. Úmidos, reflexivos e misteriosos.

Entre tropeções e arranhões, a menina aprendeu a ser mulher porque com dor não lhe restou alternativa senão crescer e se voar estava fora de cogitação, encontrou outro meio de conhecer o mundo sem sair do lugar: através das palavras. Lendo-as ou escrevendo-as, trilhou tantos caminhos, viajou pelo passado e pelo futuro, foi turista de mundos à parte onde havia um pouco de sensibilidade, presenciou nascimentos e perdas, grandes histórias de amor com ou sem finais felizes e embora ninguém mais pudesse entendê-la, pois bem, os livros podiam, não faziam distinção de sua figura porque foram feitos para serem lidos, tocados e amados, foram criados por pessoas as quais nem sequer conhecerá, mas de que de alguma forma contribuíram para que ela se tornasse essa grande mulher.

Ela nunca mais rabiscou os quadrados da amarelinha, nunca mais brincou de casinha, porque cresceu e o mundo lhe cobrou outra postura. O tempo parece escorrer de suas mãos como areia movediça, no entanto num lugarzinho bem distante do seu coração reside aquela menina de sorriso gaiato e esperanças a mil, enfim protegida de todo o mal que lhe fizeram, aquecida numa casinha erguida e sustentada pelo mais genuíno amor, aquele capaz de salvar uma vida dada como perdida.

Porque é o que ela faz hoje, através das palavras, salvar vidas já dadas como perdidas e esse é o seu par de asas, seu dom de tocar corações antes mesmo de uma saudação física e formal porque quem a lê desvenda a sua alma, enquanto que quem a julgou pela aparência mostrou apenas a pequenez do caráter.

Olhando para esse sorriso doce você duvidaria de tudo o que ela passou, porque não parece, ninguém acreditava que ela seria capaz de dar a volta por cima e fazer da sua dor a inspiração de muitas pessoas cujos rostos se iluminam com a sua poesia.

Eles estão aí para provar que quando tudo parece perdido, para o amor ainda não está, um pouquinho de amor ao coração mais quebrado poderá curar.

Ela pode até não ser anjo nem voar por aí, mas suas asas a fizeram chegar mais longe do que todos aqueles que tentaram puxar o tapete dela.

Marisol Luz (Mary)
Enviado por Marisol Luz (Mary) em 09/11/2017
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