A iniludível
Ela está presente em nosso cotidiano os trezentos e sessenta e cinco dias do ano, ou trezentos e sessenta e seis, se for ano bissexto, quase imperceptível. Pouco nos damos conta de que ela existe, senão quando nos leva algum dos nossos, sem prévio aviso. A iniludível, a indesejada das gentes, a morte enfim, é deusa a qual tudo que é vivo se subordina, rende-se em reverência.
O Dia de Finados sempre me suscitou grandes e pequenas reflexões. Na infância era dia temido: as pessoas a meu redor geralmente me furtavam o motivo de seu luto, da tristeza no semblante. Tinha já, ainda que por suspeita, a sensação de estar sendo engabelado. Se lhes perguntava para quem e para que acendiam velas nesse dia, censuravam-me. Fui crescendo, alfabetizando-me no mundo e nas palavras e julguei mais tarde as inquirições feitas outrora àqueles viventes descabidas. Não havia, como julgo ainda não haver, explicação naturalmente para o mistério engendrado pela morte.
Ter ciência de nossa finitude é assombroso, eu sei. Desde criança somos impulsionados a crer que, se nos comportamos como bons viventes, teremos , após a ''passagem'', boa acolhida em lugar desconhecido de olhos humanos; teremos a tão sonhada Eternidade. Ir de encontro a esse direcionamento é atividade enfadonha que requer muita energia. A Eternidade já existe: reside no interior de quase todo mortal. Em outras palavras, "no fundo, ninguém crê na sua própria morte, ou, o que é o mesmo, no inconsciente todos nós estamos convencidos da nossa imortalidade", como diz Freud.
Hoje, como nos demais Dias de Finados, gosto de lembrar meus mortos, que, graças à literatura, tornam-se a cada dia mais vivos. Saudações à iniludível.