Quem sou eu?!

Um dia fui menina. Deitava na calçada para ver imagens nas nuvens. Eram muitos jacarés e ovelhas, tinham tigres e dragões. Lembro do cheiro de manga no pé. Eu não era muito boa para subir em árvores ou andar sobre as pedras do rio. Fui uma menina meio urbana. Gostava mesmo era de jogos. Demorou um pouco, mas tive um vídeo-game show. Ouvia boas músicas desde cedo. Clássicas, Italianas e muitos hinos com arranjos incríveis. Aí a vida foi seguindo seu percurso natural. Tive as primeiras decepções. Achava que minha mãe não me amava. Comei a nutrir mágoa e raiva. Esses sentimentos ficaram gigantes. Insuportáveis. Percebi que quanto mais eu crescia, mais complexas ficavam minha visão sobre os que me cercavam e sobre o mundo. Nessa etapa não via mais jacarés no céu, nem tigres ou dragões. Agora os dragões estavam dentro de mim. Fui ficando amarga. Tinha que me proteger das pessoas adultas que tinham um talento destrutivo de magoar crianças. Eu tinha uma vó. Ela me colocava no colo e contava histórias. De um Jonas que escondeu-se dentro da barriga da baleia. Imaginei imediatamente que no ventre da baleia deveria ser um lugar seguro para me esconder. Deus cuidou de cada detalhe da vida de Jonas e cuidava da minha também. Não compreendia por que crianças sofrem. Elas ainda continuam sofrendo nos dias de hoje. De forma muito mais cruel. Minha identidade era formada pelo grupo ao qual eu fazia parte. A igreja era tudo o que eu tinha. Aprendi que tinha que ser uma pessoa boa, assim seria recompensada. Aos maus estava destinado o fogo do inferno. Me transportei ao meio de uma fogueira bem grande. Foi horrível me imaginar queimando até dar o último suspiro. Teria que obedecer esse Deus porque o mesmo Deus que me amava incondicionalmente era o que poderia me jogar para o meio desse fogo. Mas, a raiva continuava lá. As vezes adormecida. Tão adormecida que chegava a me achar realmente boa. Minha mãe não era legal comigo. Meu pai passou desapercebido na infância. Fui uma adolescente rebelde e culpei meu pai por todas as vezes que minha mãe me bateu. Agora ele era meu inimigo. Travamos diversas batalhas onde ninguém nunca era o vencedor. Nos magoamos e deixamos pessoas a nossa volta igualmente magoadas. Casei. Enfim, minha vida estava desvinculada deles. Não foi assim. Foi apenas o começo de novas batalhas. Então, achei que amar uma mulher seria uma boa. Era como ser plenamente aceita. Mas, acabei descobrindo que as vezes as pessoas nos usam. Minha vó morreu. Fiquei só. Busquei em pessoas tudo que faltou em relação a carinho. Não encontrei. Então, cresci, tornei-me adulta. Ainda sem compreender em que parte do caminho roubaram a minha identidade. Não sei quem sou. A parte boa de não ter essa resposta é não precisar rotular nada. Sou tudo e não sou nada. De repente isso baste.