Poemas e Ideologias
A música nos dá exemplos muito mais claros que a poesia de como concepções filosóficas, políticas e estéticas se distinguem do domínio da técnica da composição e do instrumento.
Encontramos excelentes instrumentistas, interpretes ou compositores, cujo o talento se encontra no domínio dos recursos e possibilidades do instrumento. Isto nada tem a ver com alguma concepção sua, a não ser pela escolha de algum repertório específico e da preferência por certas músicas. Seu brilho não se encontra neste aspecto ideológico, mas no domínio do instrumento.
Encontramos excelentes compositores, do ponto de vista da harmonia da instrumentação e domínio de diversas técnicas musicais, mas cuja expressão filosófica ou estética é restrita a certos grupos. Em outras palavras, são compreensíveis e valorizadas por traduzirem e as vezes refinarem concepções ideológicas e estéticas pertencentes a certos grupos sociais. Estes compositores são como seus tradutores, a voz e a expressão pública de seus gostos e valores.
O valor deste compositor é equivalente ao valor social do grupo do qual traduz e interpreta seus gostos e valores. Isto significa que o valor de suas composição corresponde a valores sociais de certos grupos hierarquicamente superiores.
Muito do que se chama de bom gosto, sofisticação ou "cultura" é uma arte que traduz valores e gostos antes legitimados como superiores. Estes valores tem sua força ideológica como legitimação de um determinado grupo e de determinados acessos restritivos que permitem este mesmo grupo se reproduzir naquelas posições e impedir que outros tenham o mesmo acesso.
Por outro lado, se adotássemos como critério não técnico para avaliar uma composição, nada impediria que o Funk carioca fosse uma composição tão boa quanto a de uma música clássica, se considerarmos como a expressão de valores e gostos de um determinado grupo social.
O problema é que este grupo social do qual o Funk é produto tem sua posição subalterna na hierarquia social, o que significa não só desvantagens econômicas e sociais, mas que são vazios dos gostos e valores que dão acesso a posições superiores na hierarquia social. Não que não tenham seus gostos e valores, mas que estes não tem valor na estrutura social de acessos e posições.
Alguns raros compositores, infelizmente confundidos com artistas voltados para o grupo privilegiado socialmente, conseguem expressar concepções ideológicas, estéticas ou filosóficas que vão além destas divisões de classe. Elas conseguem falar de coisas que independem de suas origem ou classe social, falam diretamente ao ser humano seus medos, sua existência, seus dilemas, a busca de sentido, etc.
Estes raros artistas são os verdeiros gênios, pois conseguem ir além dos limites valorativos de sua classe, dos seus preconceitos e provincialismo e conseguem falar de algo quase universal. Compreendidos por qualquer pessoa, contanto que não contaminados por pedantismo de classe média que insiste em usá-los como instrumentos simbólicos de distinção.
Muitos pensadores são pessimistas em relação a esta possível universalidade alcançável pela arte. Entre eles Bourdieu, citado abaixo.
*este texto, embora não cite diretamente Pierre Bourdieu trata da minha compreensão e reflexão sobre suas ideias. Coisas que aprendi em vários dos seus livros e preocupações sociais. Recomendo a leitura antes de qualquer crítica:
> O Poder Simbólico - Coletânea de apresentações em congressos e artigos publicados pelo autor.
> A Reprodução - trata do sistema de ensino e seu caracter ideológico e hierarquizante
> Os Herdeiros - uma pesquisa sobre as relações entre a origem social dos estudantes universitários franceses e o desempenho universitário. Trata da seleção cultural e arbitrária nas universidades e da construção social do talento e do dom.
> Mudança Estrutural na Esfera Pública (este de Jurgen Habermas) é uma referência na área quando se discute literatura, ideologia burguesa e opinião pública.
> A ideologia da Sociedade Industrial - Hebert Marcuse. Trata basicamente, sem entrar em questões psicológicas, de como expressões culturais marginalizadas e de ruptura são ressignificadas, cooptadas, e esvaziadas de seu conteúdo potencialmente transgressor.
> Um livro bem acessível que resume a discussão da escola de Frankfurt é do Rouanet chamado Crítica da Razão Iluminista. A preocupação do autor não tem como foco a irracionalidade do pensamento conservador, mas a força de um pensamento crítico e negativo da própria razão ( Nietzsche e Foucault e seus interpretes) que produz o impasse de uma razão que usa seus próprios instrumentos contra ela mesma. Um problema que não existe para um conservador, mas que é vital pra qualquer um que faça a defesa de um pensamento crítico da sociedade e dos valores que a sustentam.
> Teoria Estética - Theodor Adorno. Confesso que não li diretamente este livro, por reconhecer pouca maturidade e bagagem para isto. A discussão sobre a universalidade da arte em termos mais profundos tem na sua obra leitura obrigatória.
Enfim, não precisamos inventar a roda toda vez que formos discutir um assunto.