Reflexão sobre o eu e o outro
De fato, querendo ou não, são os mais próximos que nos machucam mais profundamente, a família por ex.: pois o bem quando estrangulado em sua sede de fazer-se bem, se torna mal.
O estranho, o desconhecido não nos causa grandes pesares, é o conhecido aquele que mais queremos fazer o bem que magoamos e nos magoa. Porque vivemos de imagens, e os mais próximos sâo quem nos completa. Pois, se tenho uma imagem de mim e do outro, e o outro também, tanto dele quanto minha, ambos agimos com base nas imagens, que, por um hábito recíproco que se vai criando, tendemos a desejar que o outro corresponda a imagem que fizemos de nós e dele. Caso contrário, dá-se a mágoa, ou o prazer.
O distante não nos machuca profundamente porque não criamos imagens um do outro. Ambos até tem imagens pessoais, mas não tiveram tempo de se habituar a reciproca de modos de agir. A maior raridade é ver uma relacão genuína entre duas ou mais pessoas sem reciprocidade, como de mãe e filho. Um gostar sem precedentes, um amar sem espera, um gostar simples do que é, um amor de gratidão, uma paciência que a tudo compreenda, uma consciência não somadora de desprazer. Um sentimento que sempre é...
Sem esse amor a relaçâo com as pessoas vai se tornando estreita e árida, um conflito que só aumenta a cada dia. Talvez seja utopia, por agora, isto que estou dizendo: de não criar projeções de si e do outro, como ver pássaros e flores em silêncio sem nomeá-los. Talvez no próximo século isso seja tão importante como hoje damos importância a nossas imagens.
Se podemos assistir o crepúsculo anonimamente e ver flores sem pensar, então -
Por que não fazemos isso com as pessoas? Porque é pelo outro que nos acostumamos, desde a tenra infância, a sensação de existirmos, sem o outro o "eu" é inexistente, ele é uma síntese do particular com o público, com o mundo, e por isso ele mesmo seu reflexo. Mas nada de concreto. Não tem realidade autosustentável como o Todo. Não somos uma imagem, uma coisa, uma alma individual, um feixe de memórias boas e ruins, somos o indrescritível, incógnitos, pura consciência espacial, filhos do espaço. Um dia há de emergir uma nova consciência da humanidade, livre de todo passado, leve como o espaço que a tudo contém.
Trazemos o outro dentro porque o outro é o conhecimento do mundo que chamamos "nós", nossas imagens passadas. É difícil perceber isso, que somos o mundo. Mais difícil vermos, de fato, que vivemos na virtualidade das imagens, não vivemos este fato como vemos a luz do sol, somos indolentes e preguiçosos, preferimos continuar nos causando conflito e se identificando com elogios e críticas a não mais criar imagens pessoais, expectativas e ressentimentos. E mais difícil, ainda, relacionar-se sem magoar as pessoas e ser magoado, já que é intrínsico no "eu" que se completa no outro sempre um fator não preenchido que continuará insatisfeito. Existimos como uma imagem em construção, não fixados, uma ficção que se estende de indivíduo para indivíduo nos moldes de prazer e dor, que irrompem na consciência depois que julgamos o que nos chega de fora.
O desejo de satisfação é a causa de nossa insatisfação com as pessoas.
Toda imagem ou é prazerosa ou dolorosa de acordo com o que vem de fora avaliado de dentro pelas experiências passadas - as apreciações de valor, julgamentos. Pois, sozinho eu não existo - na realidade que criamos - pra ninguém, ora! - que é Deus sem alguém para chamá-lo de Deus?
Ele não existe no sentido objetivo como a alma nas cores da borboleta e nos cantos dos pássaros, apenas subjetivo, virtual... por isso "colocou-se" o nome Deus em relação com os homens para que ele existisse.
Vemos as coisas por imagens porque não sabemos olhar para os acontecimentos como tais, sem postular um agente que reduza o Todo do acontecer em uma imagem que fez isso ou aquilo para nós, em vez de ser uma expressão da existência como um todo. Nas paisagens vemos um todo, nas pessoas vemos apenas metades...