Santuário de Cáries

Acocorado debaixo da água que cai já morna do chuveiro no meio metro quadrado do espaço do box olhando o reflexo da lâmpada numa poça ínfima no piso, cruzo os braços sobre os joelhos e as mãos diante dos olhos e suspiro desanimado e cansado. A luz branca treme a cada gota que emerge em meu cabelo e cai sobre meu reflexo; a silhueta carrancuda disforme, escura. Hoje eu acordei na necessidade de enlouquecer e canalizar a raiva através da violência. Já são dez da noite e uma tristeza letárgica e nauseabunda tomou o lugar da raiva, mas ainda sinto que preciso enlouquecer de alguma maneira. Não sei a quê direcionar esse algo que me incomoda e expurgá-lo. Parece que aos poucos estou me tornando uma criatura melodramática tal qual aquelas que repudio. Não sei exagerar o que sinto se o sinto exageradamente, não caibo nesse umbigo que estou inconscientemente querendo me colocar com as mãos atadas e afundar até o pescoço. Tornei-me um peixe nadando num aquário de água suja esperando um pedaço de pão velho. Desaprendi ressentir aceitando que temo a rejeição. Não há nada que me estremeça mais do que a possibilidade de meu corpo e meu ser virarem material de escambo sentimental. Eu olho meus olhos no espelho no círculo molhado que fiz com a mão, olho esse par de beiços e os leio dizendo ao contrário que boca é só boca. Um buraco na cara que soletra silêncios. Uma fábrica de cuspe, um santuário de cáries, um universo de bactérias, um receptáculo de impurezas invisíveis. A sua não costura palavras com palavras com palavras que eu gostaria de ouvir e ler. Os buracos laterais do meu crânio são filtros dos mais intransigentes. O choque da não-unigenia tem o brilho tardio de uma estrela num céu baço e ainda assim me castiga as fibras. A gente pensa que é especial até que deixa de ser.

31/08/2017

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 31/08/2017
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