Samuel, a Feiticeira e a Ressurreição de Jesus

I Samuel 28 narra que, nos dias que Davi enganava os filisteus fingindo lutar por eles, o rei Aquis juntou os exércitos filisteus para fazer guerra contra Israel. Samuel já estava morto, e todo o Israel o tinha chorado, e o tinha sepultado em Ramá, que era a sua cidade. Saul preparou o seu exército, Aquis preparou o dele. Mas Saul temeu os filisteus e ficou apavorado. Ele perguntou ao Senhor o que deveria fazer, mas o Senhor não lhe respondeu de forma alguma. Então ele fez o impensável, decidiu consultar uma feiticeira, apesar dele ter expulsado todos os adivinhos e encantadores de Israel.

Ele se disfarçou, foi até ela e pediu para ela que fizesse "subir" a Samuel. Os judeus tinham a clara ideia de que os mortos, mesmo os justos, ficavam embaixo da terra, até porque é para ali que os corpos vão. Portanto, a idéia de “subir” não tem nada a ver com subir do inferno ou coisa do tipo, mas simplesmente de vir do mundo dos mortos. Alguns rabinos interpretam que Samuel foi realmente invocado ali, mas isso só foi possível porque ele havia morrido havia menos de doze meses, período em que o corpo é preservado e a alma se move para cima e para baixo. Depois desse período o corpo é destruído, e a alma sobe, para nunca voltar. Outra tradição rabínica limita esse período a quatro dias.[1]

O versículo 12 diz que a feiticeira viu Samuel. Alguém pode dizer que o que ela viu foi, na verdade, alguém idêntico a ele, mas o versículo 13 diz que ela nem sequer conhecia o profeta, pois ela disse ver um “elohim” (um deus, talvez um anjo). O pastor Josias Menezes argumenta que o trecho de 1 Sm 28.7-25 foi escrito por uma testemunha ocular do evento, um dos servos de Saul, de modo que ele transmite a interpretação de uma pessoa supersticiosa do evento[2]. Mas não há absolutamente nenhuma prova disso, de modo que só podemos crer que o próprio autor de I e II Samuel, inspirado pelo Espírito Santo, quem está chamando aquele espírito de Samuel.

A feiticeira se surpreendeu com o que viu e começou a gritar. Talvez porque nunca tenha visto uma manifestação espiritual de verdade, pois era uma charlatã, o que pode indicar que não foram as artes mágicas dela as responsáveis pelo fenômeno aqui descrito, mas a vontade de um ser superior. O fato é que, depois dessa aparição, ela reconheceu que o homem disfarçado que falava com ela era verdadeiramente o rei Saul. W. G. Blaikie[3] entende que ela percebeu, instintivamente, que o único homem em Israel para quem uma aparição tão fantástica como essa ocorreria era o rei Saul. Ele argumenta, assim como Gaebelein[4], que o susto que a feiticeira teve era uma evidência de que, na verdade, esse foi um ato miraculoso do próprio Deus, como uma forma de juízo contra o rei rebelde. Isso não significa que seja possível verdadeiramente se comunicar com os mortos. Esse caso pode ter sido simplesmente uma exceção, que o Senhor permitiu apenas porque tinha um propósito nisso. Não é preciso argumentar profundamente sobre isso, pois nós vemos na Bíblia várias e várias vezes Deus promovendo situações que fogem às regras naturais que Ele mesmo estabeleceu. Aqueles que entendem que é possível se comunicar com os mortos é que precisam provar isso.

O versículo 15 novamente chama o espírito de Samuel (e não alguém parecido com ele), que reclamou porque Saul o inquietou fazendo-o subir. Saul explicou o que estava acontecendo, e Samuel confirmou que Deus estava simplesmente cumprindo aquilo que prometeu por meio dele, tirando-lhe o reino e entregando a Davi. Menezes entende que seria pecado o fato de Samuel se comunicar com os vivos, sendo que Deus proibia esse tipo de comunicação. Mas se foi o próprio Deus quem fez isso, que mal teria feito Samuel? Muitas vezes Deus ordena que os homens façam coisas que em outras ocasiões teriam sido pecado. Por exemplo, em 1 Samuel 15 o Senhor ordenou que Saul matasse todo o povo de Amaleque, até mesmo as crianças de peito, coisa que Ele próprio proibiu em outro lugar (Dt 20.13-14). Ironicamente, Samuel cita essa situação em 1Sm 28.18: “Como tu não deste ouvidos à voz do Senhor, e não executaste o fervor da sua ira contra Amaleque, por isso o Senhor te fez hoje isto”.

No versículo 19, Samuel diz que Deus entregará Israel nas mãos dos filisteus, e no dia seguinte Saul e seus filhos estariam com ele no mundo dos mortos. Menezes argumenta que essa profecia foi falsa, pois Saul se suicidou, não foi entregue nas mãos dos filisteus, e porque nem todos os seus filhos morreram. Mas não é difícil entender que quando Samuel disse que os filhos de Saul estariam com ele, quis dizer os filhos que estavam lutando ao seu lado. E podemos entender que, se Saul só se suicidou porque não queria ser morto pelos filisteus, mas que estava cercado por eles, e eles tomaram seu corpo e o decapitaram, e Israel foi derrotado nessa batalha, isso é um coerente cumprimento dessa “entrega” nas mãos dos filisteus.

Outra dificuldade das pessoas com a profecia de Samuel é que ele diz que Saul estaria com ele, mas Samuel e Saul não poderiam ir para o mesmo lugar, já que um é justo e outro injusto. Mas o Antigo Testamento frequentemente fala do sheol, a habitação dos mortos, como um único lugar para onde vão tanto bons quanto maus. A imagem mais clara que temos disso é a da história do rico e Lázaro, em que Jesus retrata o mundo dos mortos como um lugar onde justos e injustos estão juntos, embora separados por um abismo que impede que um passe para o lado do outro, mas não impede que eles se vejam e conversem. Para entender melhor isso precisamos analisar outras passagens, mas podemos determinar que não há nenhum problema em entender que, quando Samuel diz que Saul e seus filhos estariam com ele, era no sentido de que eles iriam ser mandados, também, para o mundo dos mortos; não que eles estariam necessariamente lado a lado.

Por fim, o versículo 20 descreve que, ao ouvir as palavras daquele que o versículo mais uma vez chama de Samuel, Saul caiu estendido por terra, e grandemente temeu por causa daquelas palavras; e não houve força nele; porque não tinha comido pão todo aquele dia e toda aquela noite. Concluímos, assim, com a seguinte doutrina: a história de Saul e a feiticeira nos ensina que Deus pode trazer o espírito de um morto de volta a esse mundo quando Ele bem entende, quando tem um propósito para isso. Muitos outros autores concordam com essa interpretação, como Dennis Downing[5][6] e o Eclesiástico[7]. O Senhor fez isso outras vezes ao longo da Bíblia, inclusive na ressurreição de Jesus Cristo, quando ele tomou o Seu espírito do Paraíso e o trouxe novamente para seu corpo, para a nossa justificação.

Aqueles que negam isso precisam ouvir o alerta de Downing: “Se aquele que falou com Saul foi de fato Samuel, mas alguém hoje em dia diz que foi o demônio, esta pessoa hoje pode estar cometendo um grave pecado diante do Senhor. Em Mateus 12:22-32 Jesus pronuncia uma das condenações mais severas de toda a Bíblia sobre aqueles que chamam uma obra do Senhor uma obra do demônio. Jesus condenou tal erro como ‘blasfêmia contra o Espírito Santo’. Não cabe a nós julgar ninguém quanto a este assunto. Apenas entendemos necessário alertar todos para a possibilidade de estarem falando mal de um homem de Deus quando faz profecia que se cumpre e quando a própria Bíblia diz que ele era mesmo o profeta Samuel.”

[1] SPENCE, Henry. Ellicott's Commentary for English Readers – 1 Samuel 28. Disponível em: http://biblehub.com/commentaries/ellicott/1_samuel/28.htm>

[2] MENEZES, Josias. Aula de apologética – O caso de Saul e de pitonisa de Endor. Disponível em:

<https://pastorjosiasmoura.com/2013/12/08/aula-de-apologticao-caso-de-saul-e-de-pitonisa-de-endor/>

[3] BLAIKIE, William. Expositor's Bible Commentary – 1 Samuel 28. Disponível em: <http://biblehub.com/commentaries/expositors/1_samuel/28.htm>

[4] GAEBELEIN, Arno. Gaebelein's Annotated Bible – 1 Samuel 28. Disponível em:

<http://biblehub.com/commentaries/gaebelein/1_samuel/28.htm>

[5] DOWNING, Dennis. 1 Samuel 28 – Saul se comunicou com o espírito de Samuel? – Parte I. Disponível em:

<http://www.hermeneutica.com/estudos/1samuel28-01.html>

[6] DOWNING, Dennis. 1 Samuel 28 – Saul se comunicou com o espírito de Samuel? – Parte II. Disponível em:

<http://www.hermeneutica.com/estudos/1samuel28-02.html>

[7] ECLESIÁSTICO 46 VERSÍCULO 23. Disponível em: <http://www.bibliacatolica.com.br/biblia-ave-maria/eclesiastico/46/>