Sobre existir:

Sobre existir:

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Lembro-me muito pouco de minha infância. Às vezes acho que nem mesmo vive aquilo ou que talvez eu estivesse em outro estado de consciência, sei lá. Minhas lembranças são poucas e das poucas poucas são boas. Quando penso nesse período de minha vida chego a achar que estou aqui desde o hoje e que tudo que veio antes são mentiras feitas por mim mesmo na tentativa de dar um significado pro agora.

Nesse instante, por exemplo, estou escutando musica folk às quatro e quarenta e dois da madrugada e uma barata passa por aqui, pisei nela, pisei duas vezes. Enquanto registrava isso ela se mexeu em cima daqueles papeis com poemas e desenhos antigos e eu de imediato dei outro pisão nela. Tiro o pé de cima e vi que agora eu tinha uma pintura de sangue de barata feita por cima de um poema sobre Rubber Soul. Esse momento já passou e passou tão depressa que já foge de minha mente os mínimos detalhes. Que acorde eu ouvia naquele comento? Será que pisquei? Não consigo lembrar nem mesmo da força que usei. Será que eu fiz barulho com aquele pisão ou a melancolia da madrugada fez com que o som sumisse ou mesmo nem existisse?

Minha vida nesse instante não é vigiada por ninguém e por isso carrego o peso de poder fazer o que eu quiser, isso é duro. Me pergunto o que quero fazer afinal? Penso sempre que o existir é escrever, mas quando leio coisas de dois anos atrás nada daquilo parece comigo, não era eu de certo modo! Esse estado de metamorfose continua e sem expectativa de parada me deixa louco, tão louco que não consigo fazer nada além de não dormir, não consigo fazer nada que não seja escrever ou me perder na vastidão de minha mente que a todo momento mente com esperanças fúteis.

Fechar os olhos é não existir. Dormir? Dormir é morrer, se é que existe mesmo vida pra ser vivida. Isso tudo é o fruto da soma de lembranças e lembranças e lembranças e lembranças, eu vivo de lembranças, eu sou uma lembrança. Nada pode acontecer, pois tudo já aconteceu... Acabei de tirar a tomada da geladeira por ela começar a fazer barulho estranho... Desculpe-me por registrar no meio de textos tão profundos acontecimentos tão irrelevantes, mas não quero perder nada.

Escrevo enquanto minhas costas doendo, pois escrevo inclinado pra frente, empolgado no simples registro do que passa aqui no agora. A música folk é linda e em contra partida meu corpo é tão feio, nem ligo tanto pra isso. Minha coluna vertebral arqueada me deixa meio escroto e meus olhos molhados também. Eu não choro, mas tenho sono. Meu corpo precisa descansar, afinal essa é minha segunda noite em claro, mas como eu poderei descansar se minha mente não para de voar por aí e por ali a procura de algo novo, de algo que eu ainda não ouvi. Diga-me, por favor, se você puder, alguma coisa nova e que prenda minha atenção. Se tu fizer isso eu juro te amar, mesmo sem saber quem tu és, mesmo sem saber se tu quer o meu amor.

Oh, o amor... Essa palavra já não entra da minha vida faz muito tempo. Essa palavra sai de minha boca em qualquer roda de amigos e de bebidas. Será que assim como eu tu agora pôde sentir o gosto da cerveja e ouvir a voz de algum amigo, seja esse amigo especial ou não? Será que tu sentiu/ouviu? A lembrança é uma prova de existência e só podemos existir nesse mundo de lembranças e lembranças. Sendo assim muita gente por aí não existe, a maioria na verdade, pois ninguém lembra. Quem não é lembrado pode se jogar de onde for que não vai fazer diferença alguma. Aquele cara que morreu na semana passada agora é um número e em breve, mas breve do que podemos imaginar, entraremos pra estatística também. Daqui a vinte anos eu morro e daqui a trinta ninguém mais se lembra de minha existência a menos que algum veiculo da mídia faça alguém superficialmente lembrar de qualquer coisa que eu fiz ou disse. Vai ser tão breve, vai ser um momento de existência tão breve e sem importância, que eu preferia nem existir. Arrisco dizer que vai ser um momento de descuido desse alguém e que ele vai logo se ocupar com qualquer outra coisa na esperança de esquecer que logo será ele nessa condição.

Oh, o amor... Eu já disse que amava e já chorei com essa desculpa. Hoje sei que as palavras eram apenas uma busca desesperada pelo o que é novo e que o chorar era apenas a busca desesperada pela sensação. Sentir não é existir, na maioria das vezes. Não me lembro da penúltima vez que comi batata e nem da decima vez que transei, lembro da primeira vez, mas esse lembrar é fruto de que? Por que me lembro de algumas coisas e não de outras, ou melhor, por que existo e não existo sem ter controle disso? Criar expectativas é uma boa forma de garantir existência, se é que alguém liga realmente pra isso. Criar expectativa em qualquer pessoa afim de ter com essa qualquer relação é uma boa forma de existe, pois essa vai te decepcionar mais cedo ou mais tarde e essa decepção vai ser teu grande momento de existência, pois tu sempre vai lembrar. É claro que isso não vai te fazer eterno, afinal ninguém vai sentir o que tu sentiu, mas posso te garantir que tu vai fazer a pessoa que te decepcionou existir em muitas noites tuas de solidão.

Escrever bobagens talvez também seja uma boa forma de existir, mas não é muito exata, pois na maioria das vezes só escrevemos por escrever. Agora mesmo eu quis escrever pra passar o tempo ou pra tentar existir através de lembranças solitárias, mas sei que esse tipo de existência é menos significativa do que qualquer outra, pois nessa só existimos pra nós mesmos. Ninguém liga pra isso e como poderia? Pessoas que passam dia após dia sem qualquer tipo de reflexão sobre qualquer coisa e só esperam o fim de semana chegar pra foder com num sei quem são as pessoas que mais sorriem e menos existem. Essas grandezas, existir e sorrir, afinal, são inversamente proporcionais. Já as grandezas existir e se decepcionar andam lado a lado, pois uma quase que depende da outra. Existo quando sofro e sofro quando existo, mas não só nesses momentos embora esses sejam os maiores quatros na galeria do existir.

Pausa pra um cigarro.

Ops, amanheceu mais uma vez, uma manhã linda por sinal. Tomara que eu esteja existindo nesse momento.

JMichel
Enviado por JMichel em 22/06/2017
Reeditado em 29/06/2017
Código do texto: T6034511
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