A VIDASTRA É MÁ

Estou na época de querer as coisas frescas. Hoje vou de chutney de maracujá que eu mesma fiz. Chutney é uma espécie de geleia que a gente come com várias coisas; por exemplo, com salada, no frango e na torrada. Aquele sabor azedinho, fresco e adocicado. Não sei por que apreciando meu “chut” comecei a lembrar do tempo em que eu era crente. É, hoje, dizem “evangélica”. Pois é, eu fui durante sete anos. O mesmo tempo que Jacó serviu na casa de Labão por Raquel, mas ficou com Lia. Gênesis 29. Naquela época eu gostava de ouvir a pregação como gosto hoje de ouvir a homilia e achava muito interessante quando o pastor insistia: “Não fique imaginando que certo alguém deveria estar aqui para ouvir essa mensagem - Essa palavra é para você.” É isso. Tudo o que estou vivendo é para eu viver. Ninguém mais além de mim. É fato que às vezes dá vontade de compartilhar o fardo de maneira bem cristã como a palavra bíblica diz, mas também é fato que a nossa missão não pode ser terceirizada. Ou seja, não importa a razão pela qual chegamos aqui; não importa o enredo que nos engendrou nesse capítulo; não importa que depois de feitas todas as leituras possíveis e imaginadas você descubra com toda clareza que foi vitimada. Não importa nada. Daqui em diante é com você, só com você. Mesmo que se passe um tempo esperneando, chorando como aqueles bebês mimados exigindo atenção. Não vai adiantar; a vidastra é má. Ela vai fazer-se indiferente, se de fato não o for, e vai seguir. E o drama que você causou aos poucos vai serenar, as pessoas sairão devagar, afastando-se discretamente. Os holofotes vão se apagar e o último espectador estará bocejando quando, pela enésima vez, você relatar o seu caso de vítima. A vida é isso: Importa menos o que fizeram com você que o que você fará com aquilo que sobrou. Você pode ter passado pela experiência mais terrível e abominável. Poderia ter sido vítima até de um holocausto; o tempo fará que seu sofrimento seja mais um. Um apenas. É você que terá que recolher os seus pedaços. Autopsiar o seu cadáver. Juntar as provas. Montar defesa. Ir ao juizado. Refazer o percurso. Recontar a história. Guardar a memória. Terapeutizar. É duro, é cruel, é bizarro. Mas, é verdade. Somos o corpo objetificado, a prova material. Também somos a dor subjetivada. Incomensurável mas real. Somos o verbo, o testemunho. O réu, o juiz e o júri. Na cabeça, a sentença: absolvição, punição e até morte. Ninguém nos livrará das escolhas que teremos que fazer. Ninguém estará ao nosso lado quando o fruto das escolhas der errado. Mesmo que aparentemente tenha dado certo. Pois quando estamos do outro lado, naquele que queríamos alcançar quando estávamos desse lado, é que vimos estupefatos que tudo saiu muito diferente do planejado. Por isso, plano A, B, C e seguindo. Não se economize em fazer-se tratar. Vá para a UTI, vá se exorcizar. Tome chá de boldo, homeopático, alopático tarja preta. Pule, dance, faça pirueta. Faça o que quiser, mas salve sua cabeça.

Adelaide Paula
Enviado por Adelaide Paula em 22/05/2017
Reeditado em 23/05/2017
Código do texto: T6006585
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