O Pecado para a Morte

INTRODUÇÃO

I João 5.16 ensina que ”se alguém vir pecar seu irmão, pecado que não é para morte, orará, e Deus dará a vida àqueles que não pecarem para morte. Há pecado para morte, e por esse não digo que ore”. O que é esse pecado para a morte? Nesse texto irei defender que o pecado para a morte é uma rejeição final e irremediável do Espírito Santo.

Primeiro, vou explicar o contexto da passagem. Depois, irei explicar que esse pecado é final e irremediável porque é impossível que a pessoa que o comete se arrependa. A seguir irei mostrar porque ele precisa ser uma rejeição do Espírito Santo. E, por fim, irei concluir com a que considero a melhor interpretação da passagem e sua implicação prática.

Broadus[1] ensina que um dos propósitos de I João é alertar seus leitores do perigo das atividades de hereges (1Jo 4.1-5), cujo surgimento é um dos sinais da chegada da “última hora” (1Jo 2.18). Eles haviam saído da Igreja, mas nunca foram parte dela de verdade, pois passaram a negar a Cristo (1Jo 2.18, 22; 4.3), motivo pelo qual João os chama de “anticristos”.

Em 5.13, o apóstolo nos dá outros dois propósitos de sua epístola: ajudar seus leitores a se examinarem e perceberem se já foram salvos ou não, e levá-los a crer (ou continuar a crer, segundo Alford[2] e Barnes[3]) no nome de Jesus Cristo. Essas duas coisas estão intimamente ligadas porque o próprio João diz várias vezes nos seus escritos que todo aquele que crer em Jesus terá vida eterna. Desse modo, uma das maneiras de saber que alguém não cometeu o pecado para a morte é procurando nela as evidências que I João dá de que alguém é verdadeiramente um filho de Deus.

Isso já nos fornece uma pista a respeito desse pecado para a morte. João não está falando de morte física, porque sua advertência seria inútil se a pessoa que cometeu tal pecado já tivesse morrido fisicamente; e se a pessoa ainda estivesse viva, antes de morrer ela ainda poderia se arrepender, o que seria um ótimo motivo para se orar. Além disso, a palavra “vida” (zoen) que aparece no texto é usada no Novo Testamento exclusivamente no sentido de vida espiritual, de modo que a morte que lhe é oposta nessa passagem deve ser, necessariamente, espiritual também.

Ele também não pode estar falando da morte espiritual a qual todos os pecadores estão sujeitos, pois todos que estão sem Cristo já estão mortos em seus pecados (Ef 2.1-3, 1Jo 5.12). Além disso, todo pecado, sendo consumado, gera morte (Tg 1.15). Ele só pode estar se referindo, portanto, à morte eterna, aquela segunda morte referida no Apocalipse (Ap 2.11, 20.6, 20.14), a condenação final, a separação irrevogável de Deus.

Isso fica mais claro quando lemos os versículos 14-15. O apóstolo diz que se nós pedirmos alguma coisa a Deus, segundo a Sua vontade, Ele nos ouve e atende. Então o versículo 16 diz que se alguém vir seu irmão cometer um pecado que não seja para morte, poderá orar e o Senhor concederá vida a ele. Já por aquele que comete o pecado para a morte não adianta orar, Deus não vai lhe conceder a vida espiritual. Por conta disso, a pessoa se torna incapaz de arrepender-se, pois para se arrepender precisaria da vida de Deus; portanto, ele já está condenado. Embora ainda esteja fisicamente vivo, sua morte eterna é irrevogável.

IMPOSSÍVEL QUE SE ARREPENDAM

Anteriormente, I João 1.9 diz que, se confessarmos os nossos pecados, Deus é fiel e justo para nos perdoar e nos purificar de toda injustiça. Mas aquele que peca para a morte nunca será perdoado. Isso significa que ele não pode se arrepender. Os piores pecadores, segundo a Bíblia, ainda podem ser tocados pelo Espírito e se arrepender; mas aquele que comete o pecado para a morte não. A pergunta é: existe outro texto bíblico que fale sobre um pecado de que é impossível se arrepender? Sim.

Um dos propósitos da Epístola aos Hebreus é advertir aos cristãos judeus para que não retornassem ao judaísmo. No início do capítulo 6, o autor chama esses judeus convertidos a abandonar o ritualismo da velha aliança e desenvolver sua maturidade cristã, porque, se retrocedessem, correriam o risco de se encontrar em um estado de onde não haveria retorno, pois é impossível que quem chegue a esse estado se arrependa novamente (Hb 6.6). Creio que essa situação sem retorno é o pecado para a morte.

Hebreus 6 nos mostra alguns requisitos mínimos para que alguém chegue nessa situação. Primeiro, ele precisa ter sido “iluminado” (v.4). Assim como nós precisamos de luz para enxergar coisas físicas, precisamos de luz espiritual para entender as coisas espirituais (cf. Ef 1.17-23). Aqueles que pecam para a morte já adquiriram algum conhecimento de Deus, e são capazes de entender algo da Sua Palavra, porque se fossem cegos e ignorantes não teriam pecado (Jo 9.39-41).

Ele também precisa ser alguém que provou o dom celestial, se tornou participante do Espírito Santo e das virtudes do século vindouro. Isso não significa necessariamente que seja alguém que foi selado com o Espírito, visto que vemos muitas vezes na Bíblia o Espírito usa pessoas apenas temporariamente, como o rei Saul; mas é alguém que experimentou grandes coisas do Espírito. Um exemplo disso seria um judeu que entendeu que Jesus é o Cristo, viu vários milagres e manifestações espirituais dentro da Igreja, e até viveu algumas experiências espirituais profundas, mas não nasceu de novo e, por isso, voltou atrás.

Segundo o versículo 6, seria impossível que essa pessoa se arrependesse novamente mais tarde. Porque, como diz o capítulo 10, a partir do versículo 26, se alguém pecasse voluntariamente, depois de ter recebido o conhecimento da verdade sobre Cristo, os sacrifícios do Antigo Testamento não trariam para ele proveito nenhum, pois estes já eram inúteis, uma vez que Cristo já fez o que era necessário. Desse modo, um hebreu que retornasse aos antigos sacrifícios depois de já ter experimentado do poder do Espírito Santo por intermédio do Evangelho estaria sacrificando Jesus de novo e desprezando ao Senhor.

Isso não significa que ele estaria perdendo a salvação, pois em Hb 6.10 o autor diz que esperava dos seus leitores coisas melhores, “coisas que acompanham a salvação”, o que prova que a pessoa de quem ele está falando é alguém que nunca foi verdadeiramente salvo; “saíram de nós, mas não eram de nós; porque, se fossem de nós, ficariam conosco” (1Jo 2.19). Alguém que retrocede dessa forma já não tem escapatória do inferno, pois estará cometendo um pecado imperdoável, visto que, ao voltar atrás, estará pisando no Filho de Deus, profanando o sangue da aliança com que foi purificado e blasfemando contra o Espírito Santo (Hb 10.29).

A BLASFÊMIA CONTRA O ESPÍRITO SANTO

Marcos 3, a partir do versículo 7, e Mateus 12, a partir do versículo 15, narram que, como os fariseus queriam matar Jesus, Ele se retirou para o mar da Galileia, e grandes multidões O seguiram. Certo dia, na Galileia, trouxeram-lhe um endemoniado que era cego e mudo e Jesus o curou. Vendo isso, as pessoas ficaram admiradas e, atônitas, começaram a se perguntar se Ele não era mesmo o Filho de Deus. Os fariseus, porém, movidos por seu ódio, acusaram o Senhor de expulsar demônios pelo poder de Satanás.

Jesus então refutou essa acusação absurda deles dizendo que não faria sentido Satanás expulsar seus próprios enviados. O ministério de exorcista do Senhor era parte de Sua obra de amarrar o Diabo para que o reino de Deus prevalecesse. Então Jesus lhes advertiu que todo pecado poderia ser perdoado, exceto a blasfêmia contra o Espírito Santo. Se a blasfêmia contra o Espírito é o único pecado imperdoável, e o pecado para a morte é um pecado imperdoável, segue-se que o pecado para a morte é a blasfêmia contra o Espírito Santo.

Agora, o que exatamente é a blasfêmia contra o Espírito? Esse é um dos textos mais debatidos da história. Alford define-o como um aberto desprezo do poder presente do Espírito Santo trabalhando em e para Seu Reino. No caso dos fariseus, esse desprezo se manifestou ao atribuir a demônios uma obra que eles sabiam ter sido feita pelo Espírito (sabiam porque foram iluminados, provaram o dom celestial e ouviram a palavra de Deus). No caso dos judeus cristãos condenados pela Epístola aos Hebreus, eles faziam isso negando a revelação dada pelo Espírito no Novo Testamento e voltando-se para aqueles rituais do Antigo. No caso dos anticristos de I João, eles negavam que Jesus veio em carne (1Jo 4.3) e se opunham frontalmente à Igreja.

Se atribuir a Satanás uma obra que é do Espírito Santo é blasfêmia, o contrário também procede: atribuir ao Espírito algo que você sabe que não foi Ele quem fez também é. Satanás continua agindo por meio de falsas revelações, vozes do céu, sonhos, profecias mentirosas, milagres, teologia ruim, etc.. Uma pessoa que sabe que uma obra é maligna e ainda assim a atribui ao Espírito Santo o está desonrando. Segundo Jesus, tal coisa não será perdoada.

Esse pecado sempre se manifesta com palavras, mas ele é apenas a exteriorização de algo que está no coração, a saber, uma rejeição irremediável do Espírito. “O homem bom tira boas coisas do bom tesouro do seu coração, e o homem mau do mau tesouro tira coisas más” (Mt 12.35). Assim, o pecado para a morte não é apenas qualquer ofensa ao Espírito Santo; pois muitas vezes O ofendemos por ignorância, ou sem a intenção, ou mesmo porque ainda não fomos iluminados para entender o que estamos realmente fazendo. Ele se trata, na verdade, de uma atitude de ódio irremediável contra Deus e o Seu Espírito. Todos os homens sem Jesus, no fundo, odeiam ao Senhor. Mas alguém que chega nesse estado de apostasia, em que o arrependimento é impossível, já não tem mais nenhuma esperança, mas apenas “uma certa expectação horrível de juízo, e ardor de fogo, que há de devorar os adversários” (Hb 10.27) de Deus.

CONCLUSÃO

Esse é um dos textos mais difíceis da Bíblia, e certamente muitos teólogos mais capacitados do que eu discordarão de mim, mas creio que a melhor interpretação para essa passagem é que o pecado para a morte é uma rejeição final e irremediável do Espírito Santo. Essa rejeição é manifesta em palavras e em obras, visto que com o coração se rejeita para a injustiça o que com a boca se confessa para a condenação.

A lição principal de I João 5.16 é que devemos sempre orar por aqueles irmãos que estão em pecado para que Deus lhes conceda “o arrependimento para a vida” (At 11.18). Mas aqueles que foram iluminados e experimentaram profundamente o poder de Deus e ainda assim abandonaram a fé e se voltaram contra Cristo, não adianta orar por eles, pois estão em um caminho sem volta. Eu acredito, porém, que nós não precisamos ficar nos preocupando se alguém já chegou nesse nível antes de orarmos pela pessoa.

O que a passagem está dizendo é que a nossa oração será inútil, não que somos proibidos de pedir. Desse modo, na dúvida, devemos continuar orando, porque até o coração mais endurecido Deus pode amolecer. O pior que pode acontecer é nossa oração não ser atendida, mas isso não significa que estamos pecando. E, quem sabe, “Deus lhes dará arrependimento para conhecerem a verdade, e tornarem a despertar, desprendendo-se dos laços do diabo, em que à vontade dele estão presos.” (2Tm 2.25-26).

Uma implicação dessa doutrina é que devemos sempre olhar por nós mesmos, para que nunca venhamos a cair nesse pecado. A boca fala do coração está cheio, de modo que a maneira de lutar contra esse perigo não é simplesmente examinando minuciosamente as palavras que nós falamos para não blasfemarmos, por acidente, contra o Espírito Santo; mas examinando o nosso coração, para vermos se estamos verdadeiramente confiando em Jesus, e buscando conhecê-lo mais e mais, deixando os rudimentos da doutrina de Cristo e prosseguindo à perfeição, já que esse processo de conhecer Jesus e se tornar mais parecido com Ele é operado justamente pelo Espírito Santo nos filhos de Deus.

Por fim, não devemos aceitar o que alguns falsos mestres fazem, usando esses textos para ameaçar pessoas que questionam suas doutrinas e falsas manifestações espirituais, sob o pretexto de que essas pessoas estão blasfemando contra o Espírito Santo. Isso é um erro por pelo menos duas razões: Primeiro, porque a própria epístola de I João, no início do capítulo 4, nos ordena a não crer em qualquer manifestação espiritual, mas provar “se os espíritos são de Deus, porque já muitos falsos profetas se têm levantado no mundo”. Se alguém provoca milagres, sinais e maravilhas, mas ensina doutrinas falsas, este deve ser rejeitado como falso, ainda que faça chover milagres todos os dias.

Segundo, porque só é possível cometer a blasfêmia contra o Espírito Santo conscientemente. Ou seja, negar a ação do Espírito Santo na vida de um obreiro só se enquadra nessa categoria quando você sabe que ele é um homem de Deus e ainda assim nega isso. Se você realmente se enganar a respeito de alguém, está pecando por ignorância, e não creio que isso se enquadre nesse pecado. Por fim, se você puder se arrepender disso, é sinal que Deus lhe concedeu o arrependimento e o Espírito não se afastou de você. Se você perseverar, viverá pela fé; mas se recuar, o Senhor não terá prazer em ti (Hb 10.38).

[1] HALE, Broadus David. Introdução ao estudo do Novo Testamento. Tradução de Cláudio Vital de Souza. Rio de Janeiro, Junta de Educação Religiosa e Publicações, 1983.

[2] ALFORD, Henry. Greek Testament Critical Exegetical Commentary. Disponível em: <http://biblehub.com/commentaries/alford/>

[3] BARNES, Albert. Bible Commentary. Disponível em:

<http://biblehub.com/commentaries/barnes/>