DEGRAUS
Faz alguns meses que a vi em frente ao portão de casa. Foi a primeira vez...
08:00 da manhã. Eu saía pra o trabalho e notei que ela olhava para nossa casa como se tentasse confirmar que o número era o correto. Desci a escada e, ao chegar no portão, quis entender, mas não houve qualquer interação no olhar e fui.
Ao retornar, à noite, o laudo médico havia saído. O medicamento já não tinha resposta terapêutica...
Há 15 dias, atrasado pra o trabalho, desci as escadas correndo. O portão estava aberto e a diarista estava colocando o lixo para fora... Entrei no carro, mas ao dar a partida, notei que ela estava dentro de casa, em pé, ao lado do corredor... Saí apressado não deu para interagir.
Ao retornar, à noite, novo laudo médico havia chegado. O problema tinha se alastrado rapidamente...
Semana passada o quadro clínico foi se complicando e a rotina em casa mudou muito. Somos sete na mesma casa. Há um revezamento nos cuidados. Fizemos um leito de hospital improvisado no quarto, e numa cama se requer muita atenção...
Enquanto descia a escada... Sim, a nossa escada.... São dois lances dela para três pavimentos. Ao descer, parei e vi que, ela estava na sala, em pé, de frente para a escada e antes do primeiro degrau.
Passei, mas dessa vez não quis interagir, desviei o olhar, me afastei um pouco e sai. Nesses últimos dias há muita movimentação de visitas em casa.... Entendi desse modo.
À noite, outra notícia desagradável... Há desenvolvimento agressivo do problema. A substituição do medicamento vive as complexidades da demora num processo lento...
Sente-se muita dor. Os analgésicos mais fortes já não são tão eficientes... Há um desgaste emocional muito grande. Todos estão muito fragilizados...
Particularmente, minha atenção e concentração não são mais as mesmas. Ando, relativamente, tenso... Em cada momento que estou no quarto tento abstrair, brinco com um coisa ou outra, e até a vejo sorrir...
Mas, é difícil, vez ou outra, sozinho, me pego chorando...
Anteontem, antes de descer a escada, refleti sobre a chance de não encontrar o que não quero, mas foi em vão... Ela estava em pé, e dessa vez, no segundo degrau.
Dessa vez fiquei muito irritado! Decidi olhar nos olhos dela e perguntar o por quê de tanta pressa! Mas, ela não me deu atenção... Continuou parada olhando para cima, na direção da escada, como se tivesse a certeza que, eu também tenho, mas que prefiro não acreditar...
Ontem, enquanto não dormia, queria morar na cobertura do maior arranha-céu do mundo...
Nunca soube quantos degraus tem a nossa escada...
Hoje decidi que jamais vou contar.