UBUNTU, GRATIDÃO.

De vez em quando é muito bom revisitar as bênçãos e os milagres cotidianos. Agradecer um prêmio recebido, um bom negócio feito, a aquisição de um bem precioso. As tais palavrinhas “Gratidão” “Ubuntu” estão na moda, mas o que não pode sair de moda é o sentimento da graça recebida e contemplada. O que não pode sair de moda é o reconhecimento pelo que foi alcançado com luta, com esforço, por merecimento, sim. Mas, com um toque de benção também. Rememorar é reviver aquela sensação de se sentir especial, de saber que Deus olhou para você e a graça foi concedida. Gosto de me lembrar de quando estava fazendo Pós-graduação em Porto Alegre, caminhando pelo Parque do Brique da Redenção, numa manhã de sábado, em meio a uma feirinha de antiguidades. Como eu me sentia abençoada por poder estudar com bolsa e poder viver uma realidade tão especial. Quando evocamos as memórias compreendemos que a tristeza e o abatimento de hoje podem até acometer a nossa existência, mas não podem anular nossos projetos, nossos planos. Pelo contrário, devemos continuar sonhando, projetando o futuro, trabalhando duro para merecer o que vem. Fazendo cotidianamente a semeadura, mesmo que nada pareça propício. Deus está bem ali, em meio ao sofrimento, em meio ao abandono, em meio à invisibilidade, em meio ao preconceito, em meio à exclusão. Deus está ali, acompanhando o seu esforço diário na superação de seus limites, na luta contra os pensamentos opressores que insistem em cercear a sua caminhada, no confronto cotidiano de memórias que afetaram o seu ser psíquico. No esforço sobre-humano contra rótulos e lugares-comuns que insistem em lhe colocar. Deus está na sua persistência a despeito dos recorrentes “nãos”, na desumana negação da sua felicidade, de seu talento, de sua sabedoria, de sua luta. Ele vê o seu limite e o quanto você resvalou nesse limite ao ponto de querer desistir. Mas, como um bom treinador, Ele sabe que você pode ir além e lhe permite estar no limite e, melhor que isso, Ele permite que você ultrapasse seus limites. Eu me lembro, por exemplo, que depois da Pós, comecei o Mestrado na Universidade de Brasília/UNB. Eu rodava três localidades para estudar. Trabalhava em duas e estudava noutra. Fiquei algumas muitas vezes sem almoçar porque não dava tempo de comer e ir para o trabalho. Saía do trabalho da tarde e emendava no trabalho da noite, às vezes sem jantar, sem tomar sequer um banho. E ficar sem banho era o que realmente me incomodava. Depois veio o afastamento para estudos. Quando eu nem precisava mais, já havia concluído todos os créditos, estava só por conta da escrita da Dissertação. E como foi extraordinário ter esses dois anos só para mim. Nada nesse mundo se compara ao prazer de sentar-se em uma sala de Universidade Pública e participar de uma aula com a minha professora idolatrada, minha musa inspiradora, aquela que eu ouvia no rádio, no programa de Literatura. Eu me lembro de sua elegante figura, seu colar de pérolas, de seus roteiros escritos em folhinhas amareladas. Também me lembro do cheiro do cimento, do concreto daquelas paredes, do couro gasto dos assentos. Lembro-me de escutar a falinha monocórdica dela como se fosse um solo de ópera. Margarida Patriota, a mesma que eu ouvia na Rádio Senado, no programa “Autores e Livros”. Nessa época, eu flutuava pelos corredores;me sentia numa espécie de paraíso. Eu era feliz e sabia que era. Aproveitava cada segundo como se fosse o último da minha vida. Ainda guardo alguns trabalhos daquela época e lá se vão mais de dez anos. Gosto de ver o capricho de minha letra, as anotações elogiosas de meus mestres. Eu me lembro de cada texto, cada intervenção, cada desafio. Revivo, contemplo e isso me enche de alegria agora. Esse sentimento replicado é como um refrigério para os dias não tão bons, mas também para os dias maus. Evoque uma boa lembrança nos dias maus e permita que ela lhe aqueça. Permita-se lembrar como Deus o acolheu em seu passado, quando não lhe restava mais nada, apenas o silêncio e a dor. Muitas vezes, eu pensei que era o fim. Da minha vida, da minha carreira, da minha autoestima, da minha família, da minha capacidade de amar alguém e de ser amada. Muitas vezes, eu orei acreditando que era o fim. E entreguei para Deus, não com alegria como quem confia, mas com pesar. Eu achava que nada podia ser feito. Mas, Deus me surpreendeu! Ele não só cuidou de mim, da minha autocomiseração, da minha baixa autoestima, da minha autopiedade como me elevou e me colocou num lugar seguro. Abriu as portas que me fecharam e encerrou no ostracismo aqueles que me fizeram mal. Essa lembrança em mim tem um poder de Ressurreição. Lembrar-me de que venci um dia me faz corajosa para enfrentar as minhas lutas atuais. Minhas aulas na Aliança Francesa recomeçaram hoje. Andei pelos corredores da escola, sentindo o chão que pisava e agradecendo estar ali, naquele território conquistado já no fim da minha carreira. Estou caminhando para a aposentadoria e me sinto plena e abençoada. Hoje, durante uma aula, naquele meu ritmo entusiasmado de trabalhar o texto, um aluno me interrompeu: _ Professora, você não vai dar um tempo nem no final? Eu achei que ele se referia ao final da aula, mas ele completou falando da aposentadoria. Foi aí que eu me dei conta que é maravilhoso chegar ao fim como se estivesse no começo. Ubuntu, Gratidão.

Adelaide de Paula Santos em 07/03/2017, às 23:19.

1º dia de aula na Aliança Francesa, feliz da vida!

Adelaide Paula
Enviado por Adelaide Paula em 07/03/2017
Código do texto: T5934035
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.