SACRIFICA!

Eu não sirvo para ser dondoca, nem para ser amante, nem para ter a ligeireza da conquista. Se assim eu fosse estaria no bar acompanhando o vai e vem dos rapazes em torno do balcão, cada qual com seu copo na mão, dizendo: - A próxima, please! Eu sou feita de outra matéria, afeita a outros prazeres menos carnais, mais intelectuais. Não. Acredite se quiser eu não sou lésbica. Mas, corro do bar para casa rapidinho para tomar um banho quente e escrever as minhas ideias que também são memórias, pois as releio depois, só para ver o que eu estava pensando quando eu era “assim assado”. É que eu prefiro estar no lar doce lar, comendo um bolo de chocolate que estar toda montada e produzida para seduzir aquele homem. Homem que na semana anterior deixou-se seduzir por aquela menina e que agora desfruta os prazeres daquela senhora. Não estou recriminando ninguém, mas é engraçada, ou melhor, é patética a vida vista pelos bastidores da vida. O que não é patético é sair com meu cãozinho senil, um bom e velho poodle. Surdo, cego das vistas e mal dos dentes, no dia mais feliz da vida dele, dia do qual ele não se recordará, pois que de senil sequer se lembra dele mesmo. Então, no dia que seria o dia mais feliz de sua vida, descubro que meu cãozinho é o único cão velho que existe no parque. Olho por todos os lados para me certificar que não estou sendo maldosa e não vejo outro cachorro andando devagar e arfando como o meu faz de hora em hora. O que vejo são cães saltitantes, juvenis, cheios de força e energia, envergando suas coleiras cravadas de metais como se metaleiros fossem. Fico a ronronar, pois sou uma gata: “Onde estão os cães velhos? Os cães desdentados e sarnentos onde estão? Os cães portadores de necessidades especiais, aqueles que perderam parte dos movimentos por enfermidade ou acidente de trabalho quando corriam atrás do pneu de um carro em movimento? Onde estão?” Eles não estão em parte alguma, de nenhum lugar. Ou estão todos em casa, pois dão um trabalho para carregar, alimentar, trocar e limpar a sujeira deixada ao longo do caminho. Além disso, cachorro velho é decadente, é feio, não é? Aquele pelo opaco, esbranquiçado, falhado, todo ralo. O porte desengonçado, puxando meio de lado, com um arrastar de patas sonolentas. As retinas embranquecidas deixam o olhar soturno, triste e meio assustador. Dizem logo: Ele é cego. O andar descompassado, sem a mínima orientação, dando voltas sem sair do lugar; só comprova o mundo de trevas em que vive. Não respeita comando, pois não escuta quase nada. Ele era o único no parque e eu me senti heroína! Mas, meus dois minutos de supremacia passaram logo e se anuviou a minh’alma quando pensei nos outros cães. Lembrei-me da primeira vez que o meu adoeceu e alguém me disse - talvez seja melhor sacrificar. Matar. De lá para cá já se passaram mais de cinco anos. E nesses anos, ele desfrutou a vida com galhardia. E de novo adoeceu e de novo alguém falou – Sacrifica! E mais uma vez pude ouvir – Sacrifica! Muitas vezes eu pensei – “Como as pessoas são rápidas em destruir o que elas não fizeram.” Dei de ombros aos homicidas e fui viver a vida anciã do meu cão. Estamos aqui; eu e ele e eu. E, de vez em quando, saímos para dar uma volta e desfrutar a paisagem. Caminhamos passos lentos, escolhendo entre o gramado e o asfalto. Ele farejando o chão, eu olhando para o céu. Em nosso dia nada falta, apenas uma observação – Se no parque não há cachorros modorrentos tampouco crianças especiais e velhinhos dementes.

Adelaide de Paula Santos em 04/03/2017, 23: 50.

P.S.: Somos mestres em descartar o que não serve. Da criança cuja falha não me auto estima ao ancião cuja velhice me envergonha. Sacrifica!

Adelaide Paula
Enviado por Adelaide Paula em 04/03/2017
Reeditado em 05/03/2017
Código do texto: T5930926
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