O FILÉ DE CADA UM
Para hoje não tenho nada. Talvez reeditasse um conto antigo que amo, um dos primeiros que escrevi, mas isso estragaria o meu compromisso com a palavra escrita e vivificada todo dia. Será possível que um dia não tenha nada estimulante para me mover? Penso e repenso. Removo dentro de mim as memórias, quem sabe buscando um afeto distante, algo pessoal, bem familiar. Lembro - me da cozinha e dos pratos exóticos que comíamos e que me fizeram, e a cada um de meus irmãos, fortes. Lembro-me que não tínhamos o filé, nem a melhor parte do frango, quando havia frango. Lembro-me da minha mãe pedindo para lembrarmo-nos dos outros e guardar o pedaço do pai. De repente, essa lembrança me veio assim. Acho que porque vi um garotinho reivindicando a sua parte no prato do pai e, curiosamente, o melhor pedaço. Enquanto isso, os adultos se riam daquela gracinha. Com uma garfada, ele garfou o bife do prato. Estranhamente ele recebia a melhor parte sem o menor merecimento. Imediatamente, me veio à mente um monte de gente que reivindica o filé de tudo na vida, inclusive daquilo que não merece. Estamos cercados de adultos mimados e malcriados por um afeto nefasto que os fez acreditar que eles merecem o melhor sempre. Oras, não era certo que o pai que trabalhou duro o dia inteiro, que necessitava repor suas energias para trazer o sustento para casa, repassasse o melhor para o filho. Não era certo que a mãe que labutou dentro de casa entregasse o seu quinhão para o pequeno. As crianças deveriam ser ensinadas a compartilhar dentro do lar. Deveriam ser ensinadas a ceder dentro da família. Deveriam compreender desde cedo que, às vezes, o mérito e o direito são do outro. Passar dificuldades na vida nos coloca com os dois pés firmes na terra e, com pés bem fincados, podemos erguer a cabeça e olhar longe. Os pais que ensinaram a dividir, inclusive o pior, ensinaram o melhor para seus rebentos. O belo e suculento bife, comido sem a fome devida e o devido merecimento, vai estufar o estômago e causar incômodo. Será um estorvo, como também é um estorvo aquele que reivindica o filé que não fez por merecer.
Adelaide de Paula Santos em 23/02/17, às 00:01.
P.S.: Recebi um convite para comer um prato feito de miúdos lá no interior da França. Uma iguaria francesa! Quem diria que meus pais tinham um paladar tão nobre!
Oui, monsieur! J'adore!